Livros da Fuvest: “Nós Matamos o Cão Tinhoso!” – Uma história sobre a injustiça social

O escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana reúne no livro contos que abordam as opressões e os preconceitos da colonização portuguesa

“Nós Matamos o Cão Tinhoso!” é uma das obras que integram a lista de livros para o vestibular da Fuvest – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Reprodução/MrMockup e Divulgação/Editora Kapulana

“O Cão Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer.”

Este parágrafo abre o primeiro conto do livro Nós Matamos o Cão Tinhoso! , do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana. E já desperta a atenção do leitor. Com linguagem fluente e uma narrativa que traz aspectos da cultura moçambicana, a história surpreende. E os estudantes que se preparam para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular), que seleciona os candidatos aos cursos da USP, vão se identificar com os questionamentos dos alunos da escola onde o Cão Tinhoso aparecia, com seu corpo magro e cheio de feridas com moscas ao redor. O desafio é perceber a metáfora dos olhos azuis e das lágrimas que lhe escorriam pelo focinho.

A professora Rita Chaves, que leciona Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, comenta a importância de Nós Matamos o Cão Tinhoso!: “A leitura desses contos é muito importante por vários aspectos. Essa seleção nos traz a realidade de um sistema colonial que se prolongou para muito além do que seria razoável. O livro foi publicado no começo da década de 1960 por um escritor então muito jovem, que logo deixou transparecer uma notável maturidade, inclusive no plano estético”.

Luís Bernardo Honwana nasceu em 1942, em Moçambique – Foto: José Luis Cabaço

A edição moçambicana, original do livro, foi lançada em 1964. “Luís Bernardo Honwana, com pouco mais de 20 anos na época, consegue delinear uma sociedade cruel, dominada pelo código do racismo e da injustiça social”, conta a professora. “Na elaboração dos enredos, a inviabilidade da vida ali se mostra pela chave do preconceito de várias ordens intervindo fortemente no funcionamento da sociedade. Comportamentos racistas e machistas são os mais evidentes.  Mas podemos observar sempre o peso do poder esterilizando as relações, determinando a covardia de procedimentos hierárquicos, inclusive no espaço muitas vezes visto como ingênuo, como é o universo da infância. Em todos os contos que integram Nós Matamos o Cão Tinhoso, podemos ler que, sob o domínio colonial, não há lugar para a inocência.”

Sobre a linguagem, Rita Chaves destaca que, além do desenho preciso de uma situação histórica representada em cada uma dessas narrativas, é necessário considerar a qualidade da escrita de Honwana. “Ele traz uma seleção de textos muito bem realizados do ponto de vista estético, em que percebemos o domínio dos elementos estruturais da narrativa. Na criação das personagens, na montagem dos enredos, na representação do tempo e do espaço e na instituição do foco narrativo, o autor exercita a sua capacidade de criação, oferecendo ao leitor o que se espera de um conto.”

“A ideia de buscar uma abordagem integral do cotidiano dos colonizados também se manifesta na cobertura do ciclo da vida humana.”

Enquanto o menino Ginho vai narrando, o leitor acompanha o andar lento do Cão Tinhoso. E aprende palavras ou expressões utilizadas no cotidiano de Moçambique, que fluem no texto:

“A Senhora Professora deu um grito para o Cão Tinhoso ouvir bem: Suca daqui! O Cão Tinhoso voltou-lhe as costas e desapareceu pelo portão afora, sem dizer nada, com o seu andar de carroça velha e com a cabeça a fazer balanço como os bois.”

Rita Chaves, professora de Literaturas Africanas da USP – Foto: José Luis Cabaço

No rodapé das páginas há a tradução: “suca” é uma expressão utilizada para expulsar alguém ou para exprimir reprovação ou rejeição. Tem também “labrego”, que é uma designação depreciativa para apontar pessoa sem educação. Todas as diversas e interessantes expressões moçambicanas foram devidamente traduzidas para a compreensão e curiosidade do leitor.

No Brasil, a Editora Kapulana acolhe e divulga o trabalho de Luís Bernardo Honwana, já traduzido na Inglaterra, Alemanha, Suécia, Senegal, França e Espanha, entre outros países.

“O conto que dá título ao livro não se distancia dos outros, revelando o mesmo tipo de compromisso que notamos no conjunto da obra: os fortes vínculos entre a denúncia social, inadiável, e a certeza de que o trabalho literário é fundamental para que o texto ultrapasse as fronteiras de um programa político”, analisa Rita Chaves.

O conto Nós Matamos o Cão Tinhoso! traz o questionamento do narrador Ginho e também da aluna Isaura, “que não brincava com as outras meninas”. Eram os únicos da escola a darem atenção para o cão. A história tem 39 páginas. E vai crescendo entre a violência e a opressão, quando os garotos recebem a incumbência de matar o Cão Tinhoso.

Os outros contos são mais curtos, mas igualmente fortes, sensíveis e críticos. Nesta nova edição do livro, além das outras sete histórias, foi incluída Rosita, Até Morrer, de 1971, publicada inicialmente numa antologia de contos moçambicanos, em 2001, pelo escritor e professor Nelson Saúte, denominada As Mãos dos Pretos, título de outro conto de Honwana. “Em vários contos, como em Nós Matamos o Cão Tinhoso!, o autor aposta na energia de um ponto de vista identificado com o olhar infantil, explorando o potencial do discurso da criança, ali encarada principalmente como um personagem marcado pela exclusão. E é importante notar como cada narrativa percorre os diferentes espaços e explora as diversas relações que compõem o mundo no contexto colonial”, esclarece Rita. “Em Nós Matamos o Cão Tinhoso!, temos a escola como um espaço em que a desigualdade se configura e reflete a penetração do sistema colonial em todos os níveis. O segundo conto, Inventário de Imóveis e Jacentes, traz o universo familiar que permite acompanhar, pela descrição da casa, a precariedade material que definia o ambiente dos colonizados. Em Dina, é o mundo do trabalho que é abordado e esse espaço surge especialmente tocado pela vulnerabilidade da mulher.”

A professora Rita Chaves assinala: “A ideia de buscar uma abordagem integral do cotidiano dos colonizados também se manifesta na cobertura do ciclo da vida humana. Se a infância é focalizada em quatro contos – Nós Matamos o Cão Tinhoso!Inventário de Imóveis e JacentesPapá Cobra e Eu e As Mãos dos Pretos -, em Nhinghitimo temos a juventude e em A Velhota, a maturidade. Ou seja, um desejo de contemplar todas as fases, sugerindo a impossibilidade de escapar da opressão. Os contos ilustram muito bem o que alguns estudiosos, como Frantz Fanon, denunciam: ‘o colonialismo penetra em todas as instâncias da vida’”.

Crianças brincando nas ruas de Mafalala, bairro moçambicano que remete ao cenário de “Nós Matamos o Cão Tinhoso!” – Foto: Bertrand Lacote/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0

“Em sã consciência, ninguém pode negar a relevância das culturas africanas na nossa formação cultural.”

Para a professora Rita Chaves, a iniciativa da Fuvest de incluir o livro na lista de leitura recomendada é uma resposta acertada ao reconhecimento que as literaturas africanas vêm conquistando. “Em sã consciência, ninguém pode negar a relevância das culturas africanas na nossa formação cultural, mas ainda insistimos em reduzir a força e a qualidade da participação dos povos escravizados na construção do Brasil, assim como tendemos a ignorar a importância de enxergar a África e os africanos no presente.”

Segundo a professora,  a partir da década de 1970 muitos autores africanos vêm sendo descobertos pelos estudiosos brasileiros e as pesquisas na área levaram a um movimento bastante positivo em direção aos leitores. “Inicialmente conhecer a obra desses escritores dependia de iniciativas pessoais, uma vez que os livros não estavam disponíveis. Como não tinham existência formal, nós precisávamos usar o terrível recurso das cópias para que os alunos pudessem ler os escritores africanos.”

A professora alerta para a circulação ilegal, sonegando direitos autorais, para que essa literatura se tornasse conhecida.  “De forma paradoxal, foi preciso cometer essa contravenção para que os escritores ganhassem visibilidade. Depois da vitória que foi a Lei 10.639 e, mais tarde, a 11.645, assinadas pelo presidente Lula em 2003 e 2008, o mercado editorial vem acordando para esse nicho. É um despertar tardio, mas que nos traz ânimo.”

“Ginho, o menino sofrido de Nós matamos o Cão Tinhoso!, pode ser encontrado em muitas das nossas ruas.”

Rita faz uma análise da realidade social que o livro sugere. “Para além dos efeitos materiais, o grau de desigualdade que vigora, e vem crescendo, deve ser observado também como um terrível problema ético. O absurdo dessa disparidade que nos ameaça impede que se possa falar no fim do colonialismo, embora os países africanos, por exemplo, tenham ficado independentes no decorrer do século 20. Efetivamente, nós não conseguimos vencer as suas consequências. As sombras do sistema colonial estão espalhadas pelo planeta. Elas se projetam nas estatísticas da fome e dos desastres humanitários, na superpopulação das prisões em países subdesenvolvidos e nos naufrágios com barcos de refugiados noticiados todas as semanas.”

Rita assevera: “Um livro como esse, de um autor de Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, nos traz uma realidade que, embora pareça distante, convive conosco, com muitos pontos de semelhança com qualquer cidade brasileira. Ginho, o menino sofrido de Nós Matamos o Cão Tinhoso!, pode ser encontrado em muitas das nossas ruas”.

Nós Matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana, Kapulana Editora,  148 páginas, R$ 44,90

Texto: Leila Kiyomura
Arte: Joyce Tenório – Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

Por Jornal da USP

 

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