Arquitetura e Urbanismo: A cartilha que ensina sobre onde você mora

Alagamentos, deslizamento de morros, lixo excessivo nas ruas, poluição, desmatamento em áreas de preservação, desperdício de recursos hídricos, assentamentos precários. A lista de problemas comumente encontrados nas grandes metrópoles brasileiras e, inclusive, em municípios de menor porte, é interminável. Essas e outras ocorrências são cotidianas nas cidades, e parte disso se deve à falta de envolvimento da população nessas questões.

Uma possível solução para essa apatia em relação aos problemas urbanos foi pensada há quase duas décadas por Miguel Antonio Buzzar, docente do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, em São Carlos. No final da década de 1990, quando trabalhava na secretaria de obras da prefeitura de Santo André, ele percebeu que a grande maioria das pessoas- e não somente as de baixa renda, como é comum se pensar- tem total desconhecimento sobre informações básicas da infraestrutura das cidades. “Parte considerável da população não sabe a diferença entre uma rede de esgoto e uma rede de águas pluviais. Em relação à energia elétrica, por exemplo, a população não tem ideia do que seja um transformador ou o significado de rede de alta tensão. Quando chove, as pessoas têm de lidar com os alagamentos, mas não sabem por que ele ocorreu”, elucida. “As pessoas moram e habitam as cidades, mas desconhecem seu funcionamento”.

Miguel, então, pensou em um projeto que privilegiasse alunos do ensino fundamental e médio, em princípio somente das escolas públicas, e que trouxesse, de forma dinâmica e interativa, a conscientização dos estudantes em relação ao seu entorno. “O projeto também contaria com uma publicação, a Cartilha Urbana, que traria, em uma linguagem simples a acessível, tópicos a respeito do funcionamento das cidades”, relembra.

O projeto ficou adormecido por alguns anos, até que, em 2011, Miguel participou de uma rede da FINEP*, formada por pesquisadores de diversas universidades do país**, e que tinha como foco discussões relacionadas ao desenvolvimento de tecnologias sociais. “Um dos pressupostos relacionados à tecnologia social é que ela seja apropriada pela própria comunidade, visto que é voltada justamente para a resolução de problemas sociais que, por consequência, tragam a melhoria das condições de vida”, diz Miguel. “Dessa forma, a população passa a ter papel ativo, deixando de ser objeto para se transformar em sujeito das soluções”.

Nasce um projeto

Mesmo com todo projeto idealizado, foi somente em 2016, através dos Programas Unificados de Bolsas (PUB/USP) e de outros programas de financiamento da USP que o projeto, nomeado Cartilha da Cidade, ganhou forma e, de fato, foi concretizado. Além de um material impresso, o projeto conta também com Oficinas Urbanas, que levam os participantes do Cartilha da Cidade até as escolas para promover debates a respeito da cidade, e destacar a importância de seus recursos e serviços, e como eles funcionam. “Montamos seis oficinas, cada uma delas tratando de um ou dois tópicos da cartilha. Fizemos isso na Escola Estadual Bento da Silva César, Santa Angelina, São Carlos, durante aulas de geografia, e foi uma experiência muito legal, que animou muito os participantes para dar prosseguimento ao projeto”, relembra Miguel.

Jogo Urbano realizado na Escola Estadual “Antonio Adolfo Lobbe” em 2018 (créditos: acervo do Cartilha da Cidade)

O feedback positivo inspirou uma nova ideia para o projeto: o Jogo Urbano, no qual os participantes são divididos em equipes, e cada uma delas é responsável por pensar em soluções para problemas encontrados nas cidades. “No jogo, cria-se uma cidade hipotética, e cada grupo representa um agente urbano: prefeitura, câmara municipal, agentes imobiliários, ministério público etc. A ideia é que haja um entendimento ou um esclarecimento das questões que envolvem situações de conflito ou de interesses opostos no interior das cidades”, explica Miguel.

Jogo Urbano na prática e a formação de pequenos cidadãos

O Jogo Urbano foi adaptado para alunos de diferentes faixas etárias, contemplando o ensino infantil, fundamental e médio. Em 2018, alunos da turma de cinco a seis anos da Creche e Pré-Escola da USP São Carlos tiveram a oportunidade de participar do Jogo. “Coincidentemente, a turma estava trabalhando com questões relacionadas à construção, e quando os pesquisadores da Cartilha vieram aqui, casou com o trabalho que já estávamos fazendo”, relembra Gabriele Fernandes da Silva****, professora da creche. “As crianças puderam montar a cidade, já utilizando conhecimentos prévios, mas através dos questionamentos dos pesquisadores os alunos puderam refletir melhor sobre outras questões, problematizando situações específicas, como a distribuição de hospitais e escolas, por exemplo”.

A turma deste ano, que receberá novamente os pesquisadores do Cartilha da Cidade, também já está envolvida com questões dessa natureza, embora o foco seja completamente diferente do da turma anterior. “O bacana do projeto é que ele abrange diversos tópicos sobre as cidades e, novamente, conseguimos casar com o foco de investigação da turma deste ano, que tem a ver com localização. Percorremos o campus com as crianças, e algumas delas desenharam um mapa da universidade. Pensamos novamente em trabalhar a distribuição das ruas e como a questão do trânsito é pensada”, elucida Gabriele.

Para ela, é muito importante que questões previamente discutidas com as crianças sejam revisitadas, e o Cartilha da Cidade é uma excelente oportunidade para isso. “Essas questões e essa experiência também são muito válidas para os educadores, pois também aprendemos como é possível transformar os saberes comuns em algo mais técnico e científico”, diz. “Através de projetos como esse, o conhecimento flui muito mais rapidamente, pois é um conhecimento construído, e não imposto”.

Jogo Urbano realizado na Creche e Pré-Escola da USP São Carlos (créditos: acervo do Cartilha da Cidade)

Para a diretora da Creche, Liliane Araújo, o projeto traz questões que serão pensadas pelas crianças de forma mais criativa. “As temáticas trabalhadas são de interesse das crianças, e elas lançam um novo olhar sobre situações cotidianas relacionadas ao trânsito, ao lixo, à maneira de se locomover, enfim, a questões espaciais em geral”.

Gabriele conta que os alunos se interessam muito pelo espaço que os rodeia. “A primeira pesquisa de campo que fizemos foi no campo de futebol da USP, e chamou muito a atenção dos alunos as placas de sinalização. O Cartilha pode nos ajudar bastante nas questões relacionadas à organização das cidades, e tudo isso traz a questão da cidadania. Uma criança que se envolve mais a fundo nessas questões hoje, dificilmente no futuro irá parar em uma vaga de deficientes, por exemplo”, diz Gabriele.

Cartilha da Cidade: segunda edição

O segundo volume da Cartilha da Cidade “já está no forno”, e nele novos tópicos e novas questões urbanas serão abordados. “Para que as oficinas e jogos chegassem ao formato que têm, muitos estudos foram feitos. Não é algo pronto e formatado, mas sim algo em desenvolvimento, que exige muita leitura, investigação e questionamentos”, afirma Miguel.

Ele conta que o próximo passo será disponibilizar em um site os kits da Cartilha da Cidade, no qual poderá ser feito o download tanto da cartilha como também do jogo gratuitamente. Serão kits distintos para diferentes faixas etárias.  Além disso, o site também deve ser um local virtual de discussão e compartilhamento de experiências. “O site pode até mesmo se tornar uma pequena rede com os participantes do projeto. Dessa forma, outras pessoas, de outros locais, têm a liberdade de também desenvolver outras versões da cartilha, realizando um desenvolvimento e aperfeiçoamento coletivos”, diz. “O projeto ocupa um espaço muito importante na formação dos alunos. É um projeto extracurricular, mas poderia muito bem ser curricular, e, infelizmente, isso ainda não acontece, deixando um vácuo de conhecimento sobre a cidade”, lamenta Miguel.

Oficina Cartilha da Cidade (créditos: acervo do Cartilha da Cidade)

Coletividade, inclusive, é uma filosofia que rege o projeto Cartilha da Cidade, do qual participam alunos de graduação e pós-graduação do Instituto e de outras Unidades da USP*****. Mas a coletividade nesse contexto não se refere apenas ao desenvolvimento conjunto de ações, da qual todos os membros do projeto participam, mas sim em seu sentido mais amplo. “Os participantes do projeto agregam muito a ele, trazendo experiências e relatos. E uma das questões importantes no projeto é trabalhar com a vivência das pessoas, e apostamos que essa realmente seja uma das alavancas para a formação de cidadãos”, conclui o docente.

* Financiadora de Estudos e Projetos

**Rede Morar. Ts (tecnologia social), composta pelas: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de São Paulo (USP), Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

*** Além de Gabriele, a professora Ismalia Caroline Silvati também participou do Jogo

**** Membros antigos: Desirée Figueiredo Carneiro, Ana Maria Beraldo, Analee Torres Sasso, Edimilson Rodrigues dos Santos Junior

Membros atuais: Miguel Antonio Buzzar, Miranda Zamberlan Nedel, Rachel Bergantin, Gabriele, de Campos Trombeta, Juliana Braga, Matheus Motta Vaz, Mayara Vivian P. Cruz,, Masae Kassahara, Beatriz Alves de Paula, Anna Clara Pires, Raissa Tronnolone, Tânia Bulhões, Gabriela Tomaz Feitosa dos Santos, Yara Cardoso, Verônica de Freitas, Florissa Maria Sartori Medeiros, Rafael da Cunha Faria , Yasmin Malaco Rocha, Jasmine Luiza Souza Silva

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