Memória: 1983, o ano em que a USP entrou no mercado fonográfico

Empreitada musical da Universidade, Selo USP foi esforço para unir pesquisa acadêmica e produção artística

Capítulo curto e obscuro da história da Universidade, o Selo USP se insere nas experiências de integração entre ensino, pesquisa e extensão. Oferecia gravações de músicas pouco conhecidas, interpretadas por músicos da comunidade acadêmica, regidos por nomes hoje imortalizados na historiografia musical – Fotos Reprodução

Os 90 anos da USP – completados no dia 25 de janeiro passado – guardam histórias que ficaram pelo caminho na estrada do tempo. Uma delas aconteceu no início dos anos 1980 e trata da aventura que a Universidade encarou de montar um selo musical, produzir e lançar discos. A iniciativa teve vida curta, mas reuniu personagens importantes da história da instituição e contou com artistas e pesquisadores que até hoje mantêm vínculos estreitos com a USP.

O Selo USP foi criado em 1983, inserido no contexto das comemorações do cinquentenário da Universidade, fundada em 1934. Seu planejamento coube à Coordenadoria de Atividades Culturais (Codac), órgão que existiu até 1989 e abrigava a Orquestra Sinfônica da USP (Osusp), o Coral da USP (atual Coralusp), o Departamento de Radiodifusão (Rádio USP) e  divisões de Jornalismo e Artes Gráficas.

Em 1983, seu coordenador era o germanista e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Erwin Theodor Rosenthal (1926-2016). O reitor era Antônio Hélio Guerra Vieira, professor da Escola Politécnica (Poli) da USP, que estava no cargo desde 1982, nomeado pelo governador Paulo Maluf. Uma escolha controversa, pois Vieira havia ficado em quarto lugar na votação realizada pelo Conselho Universitário e a tradição por décadas era que o governador referendasse o nome mais votado, respeitando a autonomia universitária.

Questões políticas à parte, foi sob essa administração que veio a público o primeiro disco do selo, identificado como USP LP-001. O repertório buscava gravar no vinil o DNA uspiano da pesquisa, o apreço da Universidade pela cultura erudita e o olhar atento para o próprio País. Dedicado a compositores setecentistas do período colonial, trazia no lado A uma missa fúnebre de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (1750-1805) e, no lado B, motetos de Lobo de Mesquita e Manoel Dias de Oliveira (17??-1813).

Ambos autores tinham trajetórias situadas sobretudo nas cidades de Minas Gerais, durante o ciclo do ouro, com produções principalmente  sacras. Lobo de Mesquita atuou na Vila do Príncipe (atual Serro), no Arraial do Tejuco (hoje a cidade de Diamantina), Vila Rica (que se tornaria Ouro Preto) e no Rio de Janeiro. Foi organista e responsável pela música de irmandades religiosas, principalmente da Venerável Ordem Terceira do Carmo. O contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira e sua esposa, Chica da Silva, foram alguns de seus mecenas. Já Dias de Oliveira nasceu na Vila de São José Del Rey (atual Tiradentes) e foi músico, capitão e calígrafo. Além da cidade natal, também exerceu suas atividades artísticas em São João Del Rey e Congonhas.

Capa e  contracapa do primeiro LP lançado pelo Selo USP, criado em 1983, que trouxe obras de dois compositores do período colonial brasileiro, Lobo de Mesquita e Manoel Dias de Oliveira, executadas pela Orquestra Sinfônica da USP (Osusp) – Fotos: Reprodução

A gravação do LP foi feita pela Orquestra de Câmara e pelo Madrigal do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A regência da Missa de Réquiem, de Lobo de Mesquita, ficou sob responsabilidade do professor George Olivier Toni (1926-2017), que na época já acumulava no currículo a fundação da Orquestra de Câmara e da Escola Municipal de Música de São Paulo, da Osusp e do próprio Departamento de Música da ECA. Já os motetos contaram com a mão do então jovem professor Marco Antonio da Silva Ramos, regente titular do Comunicantus, o coral da ECA, que ficaria nesse cargo de 1981 até 2019 e hoje é professor sênior da instituição.

Segundo Silva Ramos, em entrevista para o Jornal da USP, a iniciativa da gravação foi do próprio Toni. “Ele tinha uma certa imaginação cultural e era muito articulado politicamente”, comenta. Toni se propôs registrar a missa de Lobo de Mesquita no lado A do LP e ofereceu ao colega a outra metade do vinil, para gravar o que quisesse. Foi justamente a partir desse convite que o madrigal foi criado, reunindo os melhores estudantes da ECA e cantores de fora da escola, escolhidos por Toni. Entre eles estava a soprano Heloísa Petri, conhecida como Lolô, responsável por ajudar Silva Ramos na seleção dos cantores e que faleceu exatamente no dia da publicação desta matéria, 22 de março, aos 86 anos.

Os músicos da orquestra, por sua vez, contavam com estudantes promissores que anos depois assumiriam a docência na Universidade, como o flautista Gilmar Jardim, mais conhecido hoje como Gil Jardim, professor da ECA, ex-diretor geral da Osusp e ex-diretor artístico da Orquestra de Câmara (Ocam) da ECA. Ou o cravista Rubens Russomano Ricciardi, um dos fundadores do Curso de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, onde é docente e diretor artístico da USP Filarmônica, orquestra ligada àquela faculdade. E ainda o trompista Silvio Ferraz Mello Filho, que desde 2014 é professor do curso de Composição da ECA.

Flávia Camargo Toni, filha de Olivier e hoje docente do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, também participou da produção, tocando violoncelo e contribuindo com o texto de apresentação no encarte do álbum. Fazia todo sentido: nesse período, Flávia realizava seu mestrado justamente sobre a música nas irmandades religiosas de Tiradentes e a obra de Oliveira. Ricciardi também levaria seus laços com o compositor para além do LP, tendo defendido seu mestrado sobre o capitão em 2000.

Em seguida sairia o segundo disco do Selo USP, o USP LP-002. Era a vez dos compositores contemporâneos brasileiros: Mozart Camargo Guarnieri (Concerto para Orquestra de Cordas e Percussão), Oswaldo Costa de Lacerda (Quatro Peças Modais para Cordas) e Ernst Mahle (Suíte Nordestina para Cordas). No encarte do LP, reafirmava-se o compromisso do selo em difundir a música brasileira, dando preferência para “peças inéditas ou insuficientemente conhecidas”.

As obras presentes nesse segundo disco datam dos anos 1970 e oferecem algumas expressões do nacionalismo na música de concerto. A peça de Guarnieri (1907-1993) havia sido uma encomenda da Orquestra Armorial de Câmara de Pernambuco, datada de 1972. Já Lacerda (1927-2011), que foi aluno de Guarnieri e aparece com uma composição de 1975, é descrito como possuidor de um “refinado nacionalismo, fruto do extenso conhecimento das características da música brasileira, aliado a sólido domínio das técnicas modernas da composição”.

Por sua vez, a suíte de Mahle, alemão naturalizado brasileiro, hoje com 95 anos, parte de melodias do folclore nordestino recolhidas por Mário de Andrade, vindas da Paraíba, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte. Foi escrita em 1976 para o Concurso de Composição da Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Paraíba, tendo recebido o primeiro prêmio.

Nesse segundo álbum do Selo USP, a gravação ficaria a cargo da Osusp, que na época contava apenas com uma seção de cordas, sob regência de seu fundador e diretor artístico, o próprio Camargo Guarnieri. Amigo de Mário de Andrade, que foi uma espécie de mentor estético e cultural para o músico, Guarnieri assumiu suas funções na USP em 1975, já consolidado e prestigiado como compositor e depois de ter sido regente de grupos como o Coral Paulistano e a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo. Tratava-se daquele que se tornaria o compositor brasileiro mais executado no mundo depois de Villa-Lobos, com mais de 700 obras no currículo. E que receberia, em 1992, o Prêmio Gabriela Mistral da Organização dos Estados Americanos (OEA) de Maior Compositor das Américas.

Mas, em 1984, o segundo disco do Selo USP surpreendentemente representava a primeira gravação comercial de uma composição de Guarnieri, então com 77 anos. Foi o que o próprio compositor comentou numa reportagem do Jornal do Brasil de 4 de fevereiro daquele ano, assinada por Luiz Henrique Romagnoli, que também trazia declarações do coordenador da Codac, Erwin Rosenthal. O texto é uma das raras menções que se pode encontrar sobre a empreitada fonográfica da Universidade.

Na reportagem, fica-se sabendo que a tiragem do segundo LP alcançava 3 mil cópias, das quais 400 já haviam sido vendidas durante o período das férias escolares na USP. A comercialização dos discos era feita na Cidade Universitária, por questões orçamentárias. O gargalo econômico também impactava na remuneração do maestro, dos músicos e da equipe técnica: ninguém recebeu 1 cruzeiro – a moeda brasileira na época – pela gravação e o próprio Guarnieri afirmava ter comprado cerca de 20 LPs para enviar aos amigos.

Silva Ramos confirma que o tom era mesmo de aventura, poucos recursos e muito empenho. Ele se recorda que a verba do primeiro álbum foi reunida pelo próprio Olivier Toni, com origens que se perderam no tempo. Além da venda na loja da Editora da Usp (Edusp), a saída do material se dava por iniciativa dos próprios envolvidos: o regente do Coral da ECA sempre levava cópias do LP para os cursos e eventos dos quais participava.

Diante desse estrangulamento financeiro e um quadro de crise crônica, o Jornal do Brasil perguntava como a Universidade podia sustentar um selo e editar discos. A resposta de Rosenthal, um tanto quixotesca, é reveladora de um período da USP marcado menos por índices de desempenho e metas orçamentárias e mais pela aventura da produção de conhecimento: “Não pode. Mas nós estamos fazendo”, disse o professor para Romagnoli.

Capa e  contracapa do segundo LP produzido pelo Selo USP, que apresentou músicas de Camargo Guarnieri, Oswaldo Lacerda e Ernst Mahle – Foto: Reprodução

O segundo LP havia sido parcialmente financiado com as vendas do primeiro álbum e Rosenthal estudava uma proposta de distribuição mundial recebida pela Unesco. Além disso, algumas empresas já manifestavam interesse por patrocinar a iniciativa, mas o coordenador indicava que era preciso ir com cuidado para evitar exageros. Outros tempos, outras relações entre universidade pública e iniciativa privada.

Ao que parece, o USP LP-002 foi o final público dessa empreitada fonográfica. Em sebos on-line não se encontra nenhum outro vinil que traga referências ao Selo USP e a dissertação de Ricciardi, que cita sua participação no projeto, fala apenas do primeiro álbum.

Mas não deveria ter sido assim. Rosenthal comenta na matéria do Jornal do Brasil que o próximo disco da iniciativa contaria com o Coralusp e que a produção de música popular oriunda da comunidade universitária também poderia render um LP. As mesmas promessas também haviam aparecido no encarte do USP LP-001.

Um volume 3 do Selo USP pode mesmo ter ido além da ideia e quase ter vindo a público. A hipótese ganha força a partir das informações que o professor Silvio Ferraz Mello Filho, participante da gravação do primeiro LP, revelou ao Jornal da USP. Em conversa via e-mail, o professor diz se lembrar de ter realizado uma série de gravações, no estúdio do maestro Rogério Duprat, de músicas corais do compositor, pianista e professor da ECA Willy Corrêa de Oliveira. “Se não me engano, essas gravações seriam para um disco a ser lançado pelo Selo USP, mas que nunca foi mixado”, conta Mello Filho. Se esse material de fato existir e algum dia puder ser levado a público, com certeza será um lançamento histórico. Nos dois sentidos do termo.

A história continua: novos tempos, novos selos

O Selo USP pode ter durado pouco, mas isso não significa que a Universidade abandanou para sempre a ideia de gravar e lançar seus próprios álbuns. Dois projetos surgidos neste milênio usam as novas tecnologias para reunir mais uma vez sonoridades e pesquisas acadêmicas.

Um deles é o selo digital Berro, do Núcleo de Pesquisa em Sonologia (NuSom) da USP, centro de pesquisas interdisciplinar que estuda o som e busca integrar produção artística, pesquisa tecnológica e reflexão crítica. Desde 2019, o grupo disponibiliza álbuns com faixas voltadas para improvisações livres, instalações, paisagens sonoras e experimentações sônicas e vocais. A produção do selo reúne o resgate de artistas consagrados, como Rogério Duprat e Cildo Meireles, e trabalhos contemporâneos.

Não é exatamente o tipo de música que costumamos deixar no rádio do carro ou enquanto estamos na academia, mas é a oportunidade de conhecer sons que você “não ouvirá em nenhum outro lugar”, como anuncia o site do projeto. Todos os lançamentos podem ser conferidos na plataforma Bandcamp.

Outra iniciativa é o Selo Lami, do Laboratório de Acústica Musical e Informática (Lami) do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP. O foco aqui é a difusão da música brasileira, disponibilizando em CD e por meios digitais produções históricas e contemporâneas. O repertório inclui música de câmara, música eletroacústica, peças para piano, gravações de compositores consagrados e obras inéditas.

O flautista Toninho Carrasqueira e o pianista Gilberto Mendes, ambos professores da ECA (o segundo falecido em 2016), estão entre os músicos lançados pelo Lami. As pianistas Marisa Rezende e Ana Friedman e o pianista Vaz Lemes também aparecem no catálogo do selo, este último com um trabalho dedicado integralmente a Villa-Lobos. Fernando Iazzetta, coordenador do laboratório, registra seu próprio trabalho em Música Eletroacústica Brasileira.

Com alguns lançamentos em CD e outros digitais, o Selo Lami oferece parte de seu catálogo no Bandcamp. Escutar no celular ou no computador pode não ser tão charmoso quanto colocar na vitrola um vinil dos tempos do Selo USP, mas, deixando isso de lado, a qualidade musical continua a mesma.

Texto: Luiz Prado
Arte: Simone Gomes

Por Jornal da USP

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