Concurso na USP vai unificar editais para destinar vagas a docentes negros e indígenas

Pela primeira vez, processo seletivo para professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo agrega concursos distintos e adota sistema de reserva de vagas

Porcentual de professores pretos e pardos em universidades públicas após concurso é menor do que 1% – Arte: Jornal da USP sobre ícones Flaticon

  • Em âmbito nacional, a Lei 12.990/14 reserva 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para candidatos pretos e pardos (negros) em cargos da administração pública federal. Além dela, vigora no Estado de São Paulo, desde 2018, um sistema de acréscimo porcentual na pontuação final de candidatos que se autodeclararem pessoas negras ou indígenas em concursos do serviço público paulista.
  • Devido à autonomia universitária, os regramentos não se aplicam à USP, que aderiu às cotas para admissão de servidores técnico-administrativos e docentes em concursos públicos somente em maio deste ano.
  • Com carreiras e funções muito específicas, institutos de ensino superior se encontram diante da difícil equação: uma demanda altamente qualificada e um número muito reduzido de vagas oferecidas, em concursos cuja reserva de vagas e a pontuação diferenciada não são aplicadas ou são contestadas em ações judiciais.
  • Uma estratégia encontrada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP foi unificar três de seus concursos internos, em um esforço envolvendo toda a unidade para agregar editais, currículos e carreiras ligeiramente diferentes em uma única prova.

É comum abrir um edital de uma grande universidade como a USP e encontrar não mais do que apenas uma vaga em um concurso público para contratação de professores – os chamados “claros docentes”. Com duas ou apenas uma vaga em jogo, a luta contra a desigualdade racial se arrasta, diminuindo a diversidade do perfil do professorado no ensino superior. O porcentual de professores pretos e pardos em universidades públicas após concurso é menor do que 1%, segundo relatório da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

Ao identificar três vagas semelhantes que seriam destinadas a concursos isolados de vaga única, o Conselho Técnico-Administrativo da FAU iniciou um processo de unificação inédito na unidade e um dos primeiros da USP. A unidade já teve aprovação para publicar o edital unificado para o Departamento de Tecnologia da Arquitetura, cujas áreas de conhecimento foram agrupadas em um único perfil: Construção, representação, métodos quantitativos, sustentabilidade e prática profissional.

O edital do concurso para contratação dos professores doutores para a FAU deverá ser publicado no início de 2024 e será o primeiro a adotar reserva de vagas para pessoas autodeclaradas negras ou indígenas. A unidade recomenda, ainda, que todas as bancas de seleção de docentes sejam compostas com dois professores pretos, pardos ou indígenas (PPI) – a recomendação da USP é de pelo menos um. Desde o ano passado, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP disponibiliza uma lista de docentes pretos, pardos e indígenas aptos a integrar bancas de seleção.

João Sette Whitaker Ferreira - Foto: Arquivo pessoal/Linkedin

João Sette Whitaker Ferreira – Foto: Linkedin

“Durante a greve [deste ano], houve uma pressão muito forte pela reserva de vagas a docentes. E a gente tem a obrigação de testar o modelo para saber se ele faz diferença. Ninguém pode contestar enquanto não fizer”, afirma João Sette Whitaker Ferreira, diretor da FAU.

O professor – que acredita que o modelo de pontuação também funciona – admite que a solução da faculdade não necessariamente servirá de modelo para outras unidades da USP. Entretanto, ele explica que as vagas disponíveis no departamento eram próximas o suficiente para tentar.

Camila D’Ottaviano – Foto: IEA-USP

“Sobretudo a parte do currículo, porque a nossa análise é extremamente criteriosa. Mas, é claro que exigiu um esforço interno e não sem resistências”, conta Camila D’Ottaviano, chefe do Departamento de Tecnologia da FAU. Em entrevista ao Jornal da USP, a professora informou que não identificou nenhum episódio de racismo entre os colegas no processo, nem de questionamentos sobre a qualidade do desempenho de professores negros ou indígenas.

“A questão é de limites das áreas de atuação, de cada um achar que somente alguém ultra-especializado pode dar conta das demandas. A questão é da ordem da transdisciplinaridade”, diz.

 

AVANÇOS E DÚVIDAS

Em março deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu liminar suspendendo concursos abertos na USP para contratação de procurador, médico veterinário e analista administrativo. Os certames não reservavam vagas a candidatos PPI. Após a decisão, a Reitoria da USP retificou os editais e anunciou uma nova política de ação afirmativa.

“Se a atual gestão fosse pelo caminho legalista, provavelmente questionaria a decisão”, comenta Whitaker, destacando que a oportunidade de regulamentação gerou uma modificação das dinâmicas internas das unidades.

“Depois de 90 anos, pela primeira vez tivemos a criação de uma Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, que tem uma Diretoria de Diversidades com um professor negro. Avançamos em relação à legislação estadual, aplicando também a pontuação diferenciada, porque ela garante que você tenha especialistas se inscrevendo”, afirma.

Para o diretor da FAU, o atual cenário de ausência de docentes negros é reflexo de um problema anterior, de acesso ao ensino superior. Levantamento inédito divulgado pelo Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (Cedra) aponta que, entre os jovens de 18 a 24 anos, havia mais brancos do que negros no ensino superior, em 2019. E a média de brancos que concluem o curso superior chega a 22,1%, enquanto a de negros não chega a 9%.

“Quando você chega a um concurso desses, qual é o diferencial entre um e outro candidato? É a pessoa ter pós-doutorado. A nossa pós-graduação é uma das primeiras a ter cotas, além de critérios racial e socioeconômico para bolsa. A questão é que essa geração de cotistas ainda não passou em massa pelo ciclo completo para poder se candidatar”, acredita Whitaker.

“Fizemos algumas coisas autonomamente, como cotas para ingresso na pós-graduação, tiramos a prova específica de desenho para poder ingressar no Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Todos os momentos em que pudemos nos posicionar, nós fizemos. É difícil se mexer, mas quando se mexe, faz uma onda”, analisa Camila. Apesar das dúvidas que surgem, ela mantém uma certeza: “Seja lá quem forem as três pessoas que entrarem, serão competentíssimas”.

Texto: Tabita Said
Arte: Moisés Dorado

Jornal da USP

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