Gel impresso em 3D pode ser opção para pessoas com dificuldade de ingerir alimentos

Técnica melhora textura dos alimentos. Em testes de laboratório, o gel mostrou capacidade de boa absorção de nutrientes pelo organismo e poderia ser tornar uma alternativa de dieta para pessoas com disfagia

Testados em laboratório, os géis impressos em 3D poderão ser futuramente uma alternativa de dieta para pessoas com disfagia, após passarem pela avaliação de médicos e nutricionistas e receberem aprovação pelos órgãos reguladores – Imagem: Arte Jornal da USP

Um trabalho em conjunto de pesquisadores da USP e de universidades da França desenvolveu géis de leite e sucos de frutas para pessoas com disfagia, que têm dificuldade de ingerir alimentos e enfrentam restrições na dieta. A principal inovação da pesquisa é o uso de impressão 3D no processo de produção, melhorando a textura dos alimentos e garantindo boa absorção de nutrientes pelo organismo. Testados em laboratório, os géis poderão ser futuramente uma alternativa de dieta para pessoas com disfagia, após avaliação de médicos e nutricionistas e a aprovação pelos órgãos reguladores. Os resultados do estudo são descritos em dois artigos científicos, publicados nas revistas Innovative Food Science & Emerging Tecnologies e Food Research International.

Pedro Augusto - Foto: ResearchGate

Pedro Augusto – Foto: Reprodução/ResearchGate

A disfagia é uma condição onde o paciente possui dificuldades para mastigar e engolir, o que limita a ingestão de determinados alimentos e pode resultar em problemas como desnutrição. “Ela pode ser decorrente de alguma doença, por exemplo, em casos de pacientes que foram intubados e sofreram com determinados cânceres de cabeça e pescoço, ou uma condição associada ao envelhecimento”, aponta ao Jornal da USP Pedro Augusto, ex-professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba, um dos responsáveis pelo projeto. “Existem diferentes graus de disfagia e limitação e, muitas vezes, os pacientes apresentam uma queda em sua qualidade de vida”. Atualmente, Pedro Augusto é professor da Université Paris-Saclay, CentraleSupélec, no Centre Européen de Biotechnologie et de Bioéconomie (CEBB), em Pomacle (França).

A pesquisa estudou o desenvolvimento de alimentos para as pessoas que sofrem de disfagia, um público que possui restrições em sua alimentação. “O objetivo geral é usar a tecnologia de impressão 3D como ferramenta para desenvolvimento de novos alimentos e aplicações biomédicas para melhoria da qualidade de vida da população”, relata a professora Bianca Maniglia, do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP. “De forma mais específica, queremos apresentar alternativas para esse público, que poderão ser avaliadas por médicos e nutricionistas e, eventualmente, compor uma dieta disfágica.”

Os cientistas pesquisaram a produção de géis baseados em sucos de frutas e leite. “Estudamos a formação de géis com esses alimentos e demais ingredientes naturais, como açúcares e proteínas, que possam ser impressos em 3D e que possuam a textura adequada para esses pacientes”, observa Bruna Bitencourt, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Alimentos da Esalq. “Estes são alimentos importantes do ponto de vista de nutrientes e compostos bioativos. Muitos pacientes com disfagia possuem dificuldade em engolir esses líquidos, podendo engasgar ou enviá-los aos pulmões, com graves consequências para a saúde.”

Componentes do gel são aquecidos, resfriados e deixados em repouso, estando então prontos para impressão em 3D – Fotos: Cedidas pelos pesquisadores

Textura e valor nutricional

Géis são produzidos misturando alimentos com ingredientes gelificantes – Foto: Cedida pelos pesquisadores

Os géis são produzidos misturando ingredientes gelificantes (polissacarídeos e proteínas) com os alimentos, aquecendo-os, resfriando-os e deixando-os em repouso, estando então prontos para serem impressos em 3D. Os polissacarídeos são açúcares de estrutura complexa, que podem ser obtidos em amidos de diferentes fontes (mandioca, milho, batata e trigo), e também de outros polissacarídeos, por exemplo, a carragena, encontrada nas algas. “Diferentes parâmetros de processo são estudados, tais como composição e concentrações, temperaturas e taxas de transferência de calor, de forma a obter um produto com as características desejadas”, descreve a professora do IQSC. “Os géis obtidos são extensivamente avaliados, em função de diferentes características. As mais importantes são a textura dos géis, associada principalmente à capacidade de ser processado via impressão 3D e seu potencial enquanto alimento, também relacionado à textura e à acessibilidade dos nutrientes do produto pronto.”

“A textura é avaliada através de um protocolo internacional exclusivo para dietas disfágicas, utilizando um equipamento chamado texturômetro, onde podemos medir as forças e deformações associadas”, relata Bruna Bitencourt. “O potencial desse alimento é avaliado por um protocolo de digestão in vitro, isto é, realizado no laboratório, simulando o corpo humano, e interação do alimento durante esse processo, com diferentes células. “Assim, podemos estimar, por exemplo, a quantidade de nutrientes capaz de ser absorvida.”

Registro da impressão dos alimentos via impressora 3D – Vídeo: Cedido pelos pesquisadores

Até o momento, foram publicados dois trabalhos sobre os géis, nas revistas Innovative Food Science & Emerging Tecnologies e Food Research International, e há outros artigos em fase de avaliação. “Os pacientes com disfagia possuem dificuldade para se alimentar, e muitas vezes sua dieta é restrita a produtos como purês”, aponta o professor Augusto. “A tecnologia de impressão 3D é a ferramenta chave para o desenvolvimento de alimentos com textura adequada, mais atraentes e com alto valor nutricional para a população disfágica.” Os pesquisadores destacam que os alimentos desenvolvidos na pesquisa devem ser avaliados por médicos e nutricionistas. “Os géis eventualmente poderão compor dietas disfágicas após avaliação e aprovação por órgãos competentes”, afirmam. “Nosso estudo é o primeiro passo rumo à adoção desses alimentos para melhorar a qualidade de vida dos pacientes, isto é, desenvolvemos alternativas, que precisarão de futuras avaliações, regulamentações e, enfim, adoção.”

O projeto teve início com um edital de Apoio a Projetos Integrados de Pesquisa em Áreas Estratégicas (Pipae), da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI) da USP e foi ampliado por meio do programa conjunto da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil (Capes-Cofecub). Além da Esalq e do IQSC, a iniciativa envolve hoje alunos e professores da Escola Politécnica (Poli), Faculdade de Zootecnia e Engenharia e Alimentos (FZEA), Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), da Université Paris-Saclay (CentraleSupélec e AgroParisTech) e Université de Reims Champagne-Ardenne, na França.

A pesquisa tem bolsas e financiamento da Capes, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil (Cofecub) de regiões francesas (Communauté Urbaine du Grand Reims, Département de la Marne, Région Grand Est, FEDER Champagne-Ardenne 2014-2020) e da União Europeia.

Mais informações: e-mails pedro.ed.augusto@usp.br, com o professor Pedro Augusto, biancamaniglia@usp.br, com a professora Bianca Chieregato Maniglia e brunabitencourt@usp.br, com Bruna Sousa Bitencourt

Texto: Júlio Bernardes
Arte: Carolina Borin Garcia (estagiária)

Jornal da USP

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