Nova edição da publicação traz dossiê sobre o intelectual que articulou em seu trabalho uma tripla perspectiva – a filosofia, a psicanálise e a cultura

O diplomata, tradutor e ensaísta Sérgio Paulo Rouanet (1934-2022) – Foto: Leonor Calasans/IEA-USP
“Diplomata, tradutor e ensaísta, Sérgio Paulo Rouanet articulou em seu trabalho uma tripla perspectiva: a filosofia, a psicanálise e a cultura.” É assim que a nova edição da Revista USP descreve Sérgio Paulo Rouanet (1934-2022). Em parceria com o Instituto Rouanet e com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a edição 144 da revista traz um dossiê em homenagem ao criador da Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. Com sete artigos de diferentes autores, o dossiê aborda a relação entre o particular e o universal na obra de Rouanet, de forma a explorar a ampla noção de cultura defendida pelo intelectual. Publicada pela Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP, a nova edição da Revista USP está disponível neste link.
Sérgio Paulo Rouanet nasceu em 23 de fevereiro de 1934, no Rio de Janeiro, e graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Era pós-graduado em Economia pela Universidade George Washington, em Ciências Políticas pela Universidade Georgetown e em Filosofia pela New York School for Social Research, as três nos Estados Unidos. Na USP, fez doutorado em Ciência Política e foi o primeiro titular da Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do Instituto de Estudos Avançados (IEA). Secretário de Cultura da Presidência da República entre 1991 e 1992, idealizou a Lei Rouanet e estabeleceu as políticas públicas de incentivo à cultura brasileira. Ainda em 1992, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), onde permaneceu até sua morte, em 3 de julho de 2022.
A cultura no centro da sociedade
Organizado por Luiz Paulo Rouanet, do Instituto Rouanet, e Marcos Lopes, da Unicamp, o dossiê surgiu a partir do I Colóquio Instituto Rouanet/Unicamp, realizado entre os dias 11 e 14 de abril de 2023 no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. A Revista USP juntou-se à parceria e oferece aos leitores os sete artigos do dossiê. Em todos eles perpassam os ideais do Iluminismo – movimento filosófico e intelectual do século 18 que valorizava a razão em detrimento da fé como visão de mundo –, já que Rouanet acreditava na universalidade da tradição iluminista como uma corrente que transcende sua época.
O primeiro artigo, Elogio das Humanidades – Homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, exemplifica a ideia essencial sustentada pelo estudioso: a cultura como ferramenta de combate à violência. Marcelo Perine, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, inicia a argumentação com destaque para a importância da filosofia grega na construção do pensamento humanista e do conhecimento racional e ético ao longo da história. Ao trazer trechos de textos de Rouanet, Perine também ressalta a noção defendida pelo intelectual da centralidade das humanidades na formação do homem, de modo a desenvolver o pleno exercício da cidadania. “Para Rouanet, o cultivo das humanidades pode contribuir para o hábito do pensamento crítico, sem o qual nossa jovem democracia não poderia sustentar-se”, comenta o autor. O artigo ainda aborda o pensamento do filósofo francês-alemão Eric Weil (1904-1977), que afirma a cultura como um processo contínuo de superação da violência.
A defesa dos princípios iluministas também é evidenciada em Sérgio Rouanet Lê Walter Benjamin: Uma Modernidade sem Progresso?. O artigo destaca a leitura crítica feita por Rouanet da obra do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). A autora do texto, professora Jeanne-Marie Gagnebin, docente de Filosofia da PUC de São Paulo, aponta que o intelectual se aprofundou na obra de Benjamin por meio da tradução de livros do filósofo alemão, como Origem do Drama Barroco Alemão e o primeiro volume das Obras Escolhidas.
Segundo a autora, o trabalho de Rouanet ainda foi além da tradução: ele escreveu um dos primeiros estudos profundos sobre Benjamin no Brasil, Édipo e o Anjo (1981). Com base nos estudos de Benjamin, Rouanet trabalhou uma linha crítica de pensamento firmada na distinção entre Ilustração – segundo ele, a forma histórica e limitada do pensamento iluminista que prevaleceu no século 18 – e o Iluminismo, como o modelo mais amplo e atemporal do movimento. “Rouanet defende, portanto, um conceito especulativo e crítico de ‘razão’ em oposição aos modelos tecnicistas e instrumentais de racionalidade no capitalismo”, destaca a autora.

A temática central da nova edição da Revista USP é a abordagem do particular e do universal nos trabalhos de Sérgio Paulo Rouanet – Ilustração: Frontispício da Enciclopédia Gravado por B.-L Provost a partir de um desenho de Charles-Nicolas Cochin II
Numa imersão nas conexões entre Rouanet e o universo literário, os artigos O Conselheiro Aires na Obra de Sérgio Paulo Rouanet e Da Taça ao Vinho: a Linhagem Literária de Machado de Assis exploram o diálogo entre o local e o universal na obra do escritor Machado de Assis (1839-1908). No primeiro, João Almino – escritor, diplomata e membro da ABL – observa a relação entre o pensamento iluminista de Rouanet e os escritos machadianos, sobretudo nos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires. O intelectual reflete sobre a ideia de uma cultura autêntica que transcende particularidades nacionais e ultrapassa fronteiras, da mesma forma que, segundo Almino, Machado de Assis se recusou a designações rígidas e construiu uma obra que se perpetua no tempo. “Parece-me que a obra machadiana se recusa às classificações fechadas ou aceitas todas, para ocupar sempre o lugar de sua contemporaneidade”, reitera o autor. No segundo artigo, Kenneth David Jackson, professor de Literatura Luso-Brasileira da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, analisa o livro Riso e Melancolia (2007), de Rouanet, para destacar exemplos da originalidade de Machado frente aos mais de 150 autores e obras que referencia em suas produções. Rouanet propõe que Machado, ao se utilizar dessas influências, não apenas segue modelos literários, mas as adapta de forma criativa e contextualizada ao panorama brasileiro. “O vinho machadiano, portanto, é feito de uma combinação, uma amalgamação de safras e sabores, colecionados das suas vastas leituras”, afirma o autor ao estabelecer uma analogia entre safras de vinho e a obra de Machado.
O foco dos três últimos artigos é a psicanálise como objeto de estudo da filosofia, na interface com conceitos presentes na obra de Rouanet, ainda apresentada na perspectiva de um neo-Iluminismo. Em Sérgio Paulo Rouanet e a Fundação da Filosofia da Psicanálise no Brasil, Richard Theisen Simanke, professor de Psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais, sinaliza os trabalhos de Rouanet como protagonistas no período de fundação da filosofia brasileira da psicanálise. Segundo o autor, as contribuições do intelectual na década de 1980 foram fundamentais para a abertura de vias de diálogo entre a psicanálise e diversas tradições filosóficas, como a Escola de Frankfurt e o Iluminismo. “A reflexão sobre a psicanálise permeia as diversas dimensões do pensamento de Rouanet, e a fertilização recíproca resultante explica, pelo menos em parte, a originalidade de sua leitura”, argumenta o autor. Já em Rouanet e o Barroco, Denise Maurano, psicanalista e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), revisita conferências de Rouanet e relaciona conceitos psicanalíticos com a estética barroca. A autora sugere que a obra barroca, com seus paradoxos e expressões artísticas particulares, é uma ferramenta de compreensão profunda do inconsciente e das ambiguidades da experiência humana. “Barroco é o mundo do paradoxo, da dialética sem síntese, da tensão incessante entre elementos contraditórios, como o sagrado e o profano, a vida e a morte, a essência e a aparência, o interior e o exterior, a cura psicanalítica acolhe a paradoxalidade do insconsciente, onde os contrários coexistem e não há negação”, enfatiza a autora.

Capa da edição 144 da Revista USP – Foto: Reprodução
De modo a retomar as discussões sobre universalidade e particularidade, o último artigo do dossiê, Individuação e Imaginação Simbólica em C. G. Jung – Um Diálogo Possível com o Neo-Iluminismo, propõe uma reflexão sobre o valor do psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961) na elaboração de uma perspectiva neo-iluminista – conceito defendido por Rouanet em sua obra. Marco Heleno Barreto, professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte (MG), aponta que, apesar do distanciamento histórico imposto entre o pensamento junguiano e o campo da filosofia, os estudos do psiquiatra amparam a construção de uma sociedade aberta ao diálogo e menos voltada à violência. Segundo Barreto, a ênfase de Jung na individuação, nos símbolos e na imaginação ativa representa uma alternativa ao extremismo da diferença e à exclusão da universalidade no pensamento contemporâneo. “Toda a contribuição de Jung, firmemente enraizada na experiência vivida (‘memórias’) e conscientemente refletida (‘reflexões’) da individuação e da imaginação simbólica (‘sonhos’), mostra aqui o seu valor para uma posição neo-iluminista sóbria e autocrítica”, comenta o autor no artigo.
Literatura e arte
Além do dossiê sobre Rouanet, a nova edição da Revista USP ainda traz outra três seções: Textos, Arte e Livros. Em Textos, Vagner Camilo, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, oferece ao leitor uma análise do conto Camirã, a Quiniquinau, de Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899). O conto aborda a comunidade indígena da Serra de Maracaju, no Mato Grosso do Sul, explorando temas como a perda, o luto materno e a ausência de sepultura para o herói. Segundo Camilo, ao combinar dados concretos observados durante a Guerra do Paraguai com recriações líricas, Taunay desenvolve uma notável narrativa do Romantismo brasileiro. “[O conto] não dispensa a recriação literária, deixando entrever a aliança entre as informações objetivas, a imaginação e o domínio de um repertório de temas e tipos procedentes não só do Romantismo, como também da tradição clássica”, reitera o autor. A seção ainda apresenta um panorama crítico da evolução dos nomes próprios na cultura russa, num artigo do professor Noé Oliveira Policarpo Polli, do Departamento de Letras Orientais da FFLCH. Nele, Polli discute a formação tradicional dos nomes russos, que compreende três elementos: primeiro nome, patronímico – derivado do nome do pai – e sobrenome. Dos primórdios das comunidades eslavas até a influência do cristianismo na Rússia, o autor investiga as mudanças sofridas pelos sobrenomes ao longo da história do país. “Estima-se que, na Rússia, 95 por cento dos nomes venham do calendário ortodoxo, ou seja, dos gregos (como Aleksandr[a], Elena, Nikolai), hebraicos (Ivan, Iliá, Mikhail, Maria) ou latinos (Antón[ina], Íulia, Natá-lia, Klávdii[a]) do cristianismo, destaca o autor.
Já na seção Artes, a professora Elza Ajzenberg, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, celebra os 90 anos da USP, destacando sua profunda ligação com o universo cultural. A autora ressalta a Universidade como um espaço fértil para a produção artística e científica, de modo a promover uma interação interdisciplinar que agrega tanto à academia como à sociedade. Ao mencionar uma pesquisa realizada em 1926 sobre aspectos da educação e ensino no estado de São Paulo, Ajzenberg declara que “a conclusão levou à visão da organização de uma universidade dedicada a elaborar ou criar a ciência pela pesquisa e a transmiti-la pelo ensino de alto nível”.
Na seção Livros, os professores Henrique Braga e Marcelo Módolo, ambos da FFLCH, apresentam uma resenha crítica do Livro Latim em Pó: Um Passeio pela Formação do Nosso Português (2022), do escritor paranaense Caetano Galindo. Os autores enfatizam a abordagem inovadora de Galindo ao traçar o desenvolvimento da língua portuguesa a partir do latim, utilizando uma narrativa que mescla precisão acadêmica e acessibilidade para o público geral. Ao comparar a obra ao filme Cinema Paradiso (1988), Braga e Módolo sugerem que, assim como o filme homenageia a história do cinema, o livro de Galindo celebra a trajetória da língua portuguesa. Ao introduzir a comparação entre as obras, os autores afirmam: “o gesto metalinguístico [do filme], em que o cinema homenageia o cinema, veio à nossa lembrança à medida que líamos a obra de Galindo”.
A Revista USP, número 144, publicação da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP, está disponível neste link.
Texto: Mirela Cristyna Souza Costa – Estagiária sob supervisão de Roberto C. G. Castro
Jornal da USP