Abordagem combina termodinâmica e mecânica subatômica para entender as transformações energéticas no mundo além da lupa

A otimização de supercondutores quânticos pode ser possível com expansão de conhecimentos gerados pela física – Foto: Jacopo Werther/Wikimedia Commons
Debaixo de microscópios especializados, tudo se move pela mecânica quântica – em um mundo tão pequeno que não segue as nossas regras de gigantes. Esse é o universo do quantum, a menor escala de tudo.
O interesse de físicos pela dinâmica quântica surgiu das lacunas deixadas pelos seus antecessores. A mecânica tradicional – a que descreve a maçã caindo da árvore – perde sua aplicabilidade entre partículas subatômicas, governadas por interações impossíveis de serem descritas pelos modelos clássicos. A teoria antiga, então, abre espaço para o que o pensar quântico traz para o jogo.

Guilherme Zambon, doutorando do Instituto de Física de São Carlos da USP. O pesquisador combinou técnicas da termodinâmica e mecânica quântica para descrever trocas energéticas em sistemas físicos complexos – Foto: Lattes
Doutorando do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, Guilherme Zambon é o primeiro autor de uma pesquisa que aplicou modelo matemático para descrever a interação entre as partículas e o ambiente no transporte de calor: “Além de maior precisão, busca-se menos gasto de energia”. No futuro, o método poderá ser usado como base para aplicações em sistemas térmicos que exijam menor perda de calor, como baterias e computadores quânticos.
O pesquisador estuda as possibilidades que esse mundo invisível traz consigo, em especial, as relações energéticas nessa nanoescala. “Adotamos uma abordagem que foca nas limitações impostas pela termodinâmica a processos quânticos para entender o que é permitido pela física”, explica.
O estudo empregou métodos matemáticos complexos para associar a termodinâmica à quântica. A técnica, descrita em artigo publicado na revista Physical Review Letters, permite “conectar as áreas com maior rigor, tornando-a aplicável a problemas gerais”, afirma Zambon. “Fizemos uma ponte entre os conhecimentos”, adiciona.
Amnésia quântica
Desde as primeiras máquinas a vapor, a termodinâmica tenta responder a uma pergunta: como extrair o máximo de energia de um sistema? A resposta fica mais complicada hoje, justamente porque entendemos mais do mundo.
Por muito tempo, acreditou-se que o átomo fosse a menor fração da matéria – até os colidirmos uns com os outros. No choque, seus “fragmentos” se separaram, revelando partículas ainda menores, que são o objeto de interesse da física quântica. Esse campo de estudo busca entender e descrever o comportamento e as interações dessas frações atômicas.
A análise dessas partículas é geralmente realizada dentro de um sistema quântico – um recorte do universo escolhido para delimitar a pesquisa e restringir as variáveis do estudo. Zambon explica que, na prática, não se tem total controle sobre o que acontece nele: “As partículas interagem com o ambiente de uma forma que não se compreende muito bem”.
Uma possibilidade para estudar as interações subatômicas é “fechar” o sistema, isolando-o de influências externas e facilitando sua investigação.
Outra estratégia é simplificar sua evolução no tempo. Assume-se que não existe conexão entre eventos diferentes – como se o sistema esquecesse da sucessão de transformações e focasse apenas no presente. Essa “amnésia quântica” facilita a análise e o cálculo do experimento, mas considera que qualquer perda energética do sistema para o ambiente externo é definitiva e não pode ser recuperada. Essa é a chamada dinâmica markoviana, nomeada em homenagem ao matemático russo Andrey Markov, que a descreveu.
O estudo conduzido por Zambon vai contra essa ideia. No mundo real, esses sistemas possuem grande complexidade, e existe uma “incerteza sobre o que está acontecendo”, afirma. Ignorar conexões entre fenômenos acarreta em “resultados com uma margem de erro maior”, com uma compreensão incompleta – e possivelmente ineficiente – da extração energética. “Essa conexão é o que é chamado de memória, é ela que dá origem à não markovianidade”, resume.

Um sistema físico é uma porção do universo isolada para análise teórica ou experimental. Seu “lado de fora” é chamado de ambiente. Os resultados das interações que entram e saem desses espaços ainda não são bem entendidos – Infográfico feito por Daniela Gonçalves
Memórias subatômicas
“Imagine um grãozinho de areia em um mar completamente parado”, ilustra o pesquisador. “Se você der uma batidinha nele, a onda gerada vai para longe e não volta nunca mais.” Esse grão de areia no mar representa uma relação markoviana, onde não existe memória. “O que ele faz não volta para ele, porque o mar é muito grande, e o grão, muito pequeno”, explica Zambon.
“Agora imagine um grão em um copo d’água”, continua. “A onda gerada vai bater na margem do copo e voltar para o ponto de origem.” Trata-se, nesse caso, de uma dinâmica não markoviana, em que a memória do sistema é um fator determinante e interfere em sua própria evolução. “O ambiente não é grande o suficiente. Então, depois de um tempo, a interação reverbera e retorna para o grão de areia.”
As duas abordagens possuem aplicações significativas na física. “Em muitos casos, a abordagem markoviana é uma boa aproximação da realidade. Mas não é sempre verdade”, afirma.

Computadores quânticos já possuem fluxos de energia otimizados. A análise da termodinâmica quântica busca expandir o conhecimento das dinâmicas energéticas que possibilitam seu funcionamento – Foto: Ragsxl/Wikimedia Commons
Zambon explica que as conversas entre fenômenos podem ser úteis para entender o que está acontecendo quando se precisa de uma descrição mais exata dos sistemas físicos – como na otimização do gasto energético da nova geração de eletrônicos quânticos. “A memória não é desprezível. Ela tem um papel importante ali.”
A conexão temporal não se limita ao mundo teórico: “A não markovianidade é importante porque ela está presente nos processos físicos que você encontra na natureza e no laboratório”. Se um sistema quântico tem memória, a capacidade de relacionar eventos diferentes permite uma análise mais profunda e fiel da realidade.
Para investigar essas transformações energéticas em escala quântica, o pesquisador adotou a Teoria dos Recursos da Termodinâmica. Esse método de análise entende as características do sistema como recursos que podem ser aproveitados. É um modo de visualizar o que pode ser obtido a partir do estado de um sistema. A premissa permite entender quanto trabalho útil (ou seja, energia aproveitável) pode ser extraído. Aqui, a memória não é só um detalhe — ela pode ser a chave para aumentar o rendimento de sistemas térmicos, como baterias.
Uma nova ferramenta
Existe uma forma geral de descrever o papel da memória na termodinâmica quântica? Essa foi a questão que norteou o doutorado de Zambon.
O estudo da termodinâmica a partir da não markovianidade não era algo novo. Resultados anteriores já mostravam a aplicação do conceito aos sistemas subatômicos – mas apenas em casos específicos que não poderiam ser ampliados para outros cenários. O que o pesquisador propôs em seu artigo foi a generalização dessa técnica, com o objetivo de mostrar como ela seria aplicável para casos gerais da quântica.
A física quântica, em geral, analisa sistemas a partir de medições pontuais – como fotografias que congelam instantes. Para driblar essa condição, Zambon propõe o uso de uma nova ferramenta: os tensores de processo. Essa ferramenta matemática possibilita que a evolução do sistema quântico seja descrita. Com auxílio dela, consegue-se mapear as transformações que acontecem ao longo do tempo.
Essas “fotos” representam os momentos em que físicos realizam operações sobre o sistema. Quando as operações cessam, assume-se que o ambiente o está transformando. “Quando eu desligo a minha operação, o ambiente liga a dele. E assim por diante”, explica Zambon.
“Isso é algo que já é feito há muito tempo”, aponta Zambon. “Só que se assumia que essas operações do ambiente sobre o sistema não eram correlacionadas”, continua. O físico conta que, anteriormente, se considerava que os fenômenos eram independentes entre si – o que só é verdade para sistemas markovianos.
“Se a dinâmica for não markoviana, a ação do ambiente sobre o sistema é uma sequência de operações intercaladas e conectadas”, elucida. E o tensor de processo é o objeto matemático que representa essa sequência de transformações conectadas na evolução do sistema quântico. “Sua aplicação resulta na análise mais completa possível.”

O aumento da complexidade do método implica progressão positiva de extração de energia do sistema – Infográfico adaptado do artigo
Da teoria à prática
A partir dessa abordagem, foi criado um “gradiente markoviano”. Zambon chamou de degraus as categorias definidas para cada “grau de markovianidade”. Em cada passo, a análise do sistema se tornava mais complexa e integral.
Esses limites foram criados para que fosse possível entender o papel do ambiente nas transformações subatômicas. Com a adição controlada da markovianidade, entende-se melhor as vantagens que a análise temporal traz para o sistema. Ou seja: a hierarquia proposta pelo pesquisador apresenta estratégias com ganhos crescentes, podendo ser explorada para extrair mais energia útil do que seria possível em processos sem memória.
Se você subir na hierarquia, e usar sistemas cada vez mais complexos para acessar a não markovianidade, mais benefícios são extraídos. Mas ainda estamos muito longe do ideal: as aplicações, muitas vezes, não conseguem chegar aos resultados teóricos observados.
– Guilherme Zambon
O artigo Quantum Processes as Thermodynamic Resources: The Role of Non-Markovianity pode ser lido aqui.
Mais informações: guilhermezambon@usp.br, com Guilherme Zambon
Texto: Theo Schwan – Estagiário com orientação de Tabita Said e Júlio Bernardes
Arte: Daniela Gonçalves – Estagiária com orientação de Moisés Dorado
Jornal da USP