Gestão de risco teria sido mais precisa com uso de técnica estatística em São Sebastião

Pesquisa comparativa mostra que abordagem baseada em dados oferece evidências mais consistentes para orientar políticas públicas de prevenção a deslizamentos

deslizamento de terra sobre rodovia Rio-Santos na altura da Praia do Lamberto, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. À direita, estrada cortando morro arborizado. À esquerda, área de mar

Processo Analítico Hierárquico Gaussiano substitui as comparações tradicionais de pares por uma estrutura baseada em medidas estatísticas, permitindo análise de múltiplos critérios com maior precisão – Foto: Governo do Estado de São Paulo/Wikimédia

Há pouco mais de dois anos, o município de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, sofreu um desastre que resultou na morte de 65 pessoas e cerca de 2 mil desabrigadas. Uma chuva intensa causou alagamentos, deslizamentos de terra e interdição das principais rodovias que levam ao local. Desde 1996, o município já contava com estudos técnicos que indicavam setores críticos com movimentos de massa e inundação. O que seria necessário para uma gestão de risco antecipada?

Foto em preto e branco de homem jovem, cabelos curtos e cacheados, usa óculos quadrados de armação escura e veste camiseta preta

Rômulo Marques Carvalho – Foto: Lattes

“Nesse contexto, o AHP Gaussiano teria sido especialmente útil como ferramenta complementar e comparativa”, afirma Rômulo Marques Carvalho, doutorando em Ciência de Computação e Matemática Computacional no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP em São Carlos. Para ele, a integração de métodos possibilitada pelo método AHP Gaussiano daria aos gestores públicos “um conjunto ainda mais consistente de evidências para priorizar intervenções preventivas em drenagem, contenção e manejo de encostas, especialmente nos trechos já reconhecidos como críticos por diferentes estudos”.

Criado na década de 1970 pelo matemático Thomas Saaty, o Processo Analítico Hierárquico (AHP, do inglês Analytical Hierarchy Process) tornou-se um dos métodos mais populares do mundo para decisões complexas que dependem de múltiplos fatores. Ele é amplamente usado em áreas distintas entre si, como planejamento urbano, avaliação ambiental, gestão de recursos hídricos e até finanças.

Apesar de sólido e amplamente utilizado, o AHP tradicional depende de comparações pareadas entre variáveis feitas por especialistas de diferentes áreas, como geologia, planejamento e gestão de desastres. O método envolve fortemente julgamentos humanos subjetivos que podem ser antagônicos, por exemplo, considerar a declividade mais importante do que o conjunto de rochas de um determinado lugar.

“Isso quer dizer que, quando especialistas discordam ou quando o conhecimento é incompleto, o resultado pode herdar subjetividades. Embora essa característica seja útil em contextos com pouca informação numérica, ela pode gerar incertezas quando há grande disponibilidade de dados — situação cada vez mais comum graças aos satélites, sensores climáticos, drones e bancos de dados geográficos”, pontua o pesquisador, que também é mestre em Sensoriamento Remoto pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Uma solução para fugir da perspectiva dos especialistas vem do AHP Gaussiano: uma adaptação que recorre à estatística para definir a relevância de cada variável em medidas quantitativas. A abordagem utiliza a média e o desvio padrão de valores normalizados para construir a matriz de comparação, reduzindo a subjetividade e proporcionando maior rigor e precisão.

Na prática, funciona assim: o AHP tradicional atua como um processo em que especialistas comparam os fatores dois a dois e decidem quais são mais importantes. Já o AHP Gaussiano dispensa a opinião humana e deixa que os próprios dados determinem a importância relativa de cada variável, analisando como elas variam na paisagem.

Mapa de suscetibilidade a deslizamentos de terra pelo método AHP tradicional, que privilegiou regiões com declive – Imagem: extraída do artigo

Mapa de suscetibilidade a deslizamentos de terra pelo método AHP Gaussiano, que destacou regiões próximas a estradas e rios – Imagem: extraída do artigo

Análise comparativa

Rômulo Marques Carvalho é primeiro autor de um artigo que comparou os dois métodos de análise – AHP tradicional e AHP Gaussiano – a partir do desastre de São Sebastião. Ele e outros seis pesquisadores utilizaram dados sobre relevo, solo, chuvas, ocupação urbana e vegetação para criar um mapa capaz de indicar, com antecedência e credibilidade, onde a terra poderia ceder.

De acordo com o trabalho, o município aparecia em 7ª posição no mapa de suscetibilidade a deslizamentos de terra do Brasil, publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019. Além disso, o evento extremo de 2023 em São Sebastião gerou um inventário de deslizamentos extremamente detalhado, com mais de 97 mil amostras obtidas a partir de imagens de alta resolução, o que tornou possível validar os modelos com precisão.

Na análise do evento extremo ocorrido em São Sebastião, os pesquisadores compararam os dois métodos a partir de um conjunto amplo de 16 variáveis. Entre elas: fatores morfométricos (como declividade, curvatura, posição relativa da encosta), hidrológicos, geológicos, de uso do solo, distância de rios e estradas, além do inventário extremamente detalhado e em alta resolução. Segundo Rômulo, o principal objetivo da comparação foi identificar qual dos métodos se aproximava mais dos locais onde efetivamente ocorreram deslizamentos.

A comparação produziu conjuntos de pesos diferentes: enquanto a análise que utilizou o julgamento dos especialistas destacou variáveis como declividade e posição relativa da encosta, a análise estatística reforçou a distância a rios e estradas, elevação, cobertura da terra e geomorfologia.

O estudo demonstrou um rigor metodológico superior e um melhor desempenho preditivo do AHP Gaussiano, particularmente na integração de dados de Sistema de Informação Geográfica (SIG) e sensoriamento remoto para avaliação da suscetibilidade a deslizamentos de terra.

No entanto, os autores concordam que ambos os métodos são capazes de identificar de forma confiável zonas de alta e muito alta suscetibilidade a deslizamentos de terra, sendo o método tradicional particularmente útil em cenários onde não há disponibilidade de dados quantitativos suficientes ou quando o processo exige participação direta de especialistas locais. “Ele também se mantém útil em análises com poucos fatores condicionantes ou em ambientes onde julgamentos qualitativos são relevantes para a tomada de decisão. Em contrapartida, quando há volume de dados adequado, o AHP Gaussiano se torna preferível por garantir maior precisão e reduzir interferências subjetivas”, afirma.

Fator humano

Apesar da comparação ter atribuído melhores resultados ao AHP Gaussiano, os pesquisadores reconhecem algumas limitações do método – como dependência de dados qualitativos e incapacidade de considerar intervenções de engenharia que mitigam riscos.

Para superar essas lacunas, o artigo recomenda a integração do AHP Gaussiano com aprendizado de máquina para melhorias adicionais na precisão preditiva e na capacidade de resposta a emergências como a que ocorreu em São Sebastião.

“Também recomendamos o uso de dados climáticos dinâmicos, como precipitação em tempo real e informações sobre umidade do solo, que têm papel determinante no acionamento de movimentos de massa”, diz. “Por fim, bases geoespaciais atualizadas e capacidade computacional adequada permitem que esse tipo de abordagem se torne operacional mesmo em escalas municipais.” O pesquisador defende, ainda, que não se trata de substituir especialistas — e sim de potencializar sua atuação.

“A interpretação técnica permanece essencial para selecionar as variáveis, entender os condicionantes naturais e validar os resultados no campo. A diferença é que, com o AHP Gaussiano, o conhecimento humano se soma à força dos dados, fortalecendo a ciência de prevenção de desastres”

O artigo Comparative analysis of traditional and Gaussian Analytical Hierarchy Process (AHP) methods for landslide susceptibility assessment está disponível neste link.

Mais informações: romulomarques@usp.br, com Rômulo Marques-Carvalho

Texto: Tabita Said
Arte: Gustavo Radaelli – Estagiário sob orientação de Moisés
Dorado

Por Jornal da USP

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