Resgatar e preservar as histórias de vida de pesquisadores é um dos objetivos da série “Perfis ICMC”. A cada mês, uma nova história é publicada e todas farão parte do livro comemorativo do cinquentenário do Instituto, a ser publicado este ano.
“Durante muito tempo da minha vida pensei diariamente em bits e bytes. Foram cerca de 40 anos pensando em máquinas digitais, em se as máquinas podem pensar, e se nós pensamos como máquinas. Hoje me pergunto se valeu a pena investir tanto tempo nessas questões”. Assim começa a crônica Palavras & Bytes, redigida em 31 de agosto de 2020. Mais de um ano depois, a escritora se senta no jardim interno do ICMC, na manhã de sexta-feira, 12 de novembro de 2021, e se reencontra com a indagação: valeu a pena?
― Ainda sem resposta! De certo modo, sim. Se eu não tivesse passado por isso eu não teria chegado a esse estado de admiração que eu tenho pela língua e pela língua portuguesa em particular. Tudo que ela nos dá, nos permite, nos revela. É uma coisa maravilhosa. Por outro lado, eu não gostaria de ser lembrada como uma pessoa que tentou fazer com que as máquinas falassem igual ao ser humano. Porque eu não acredito nisso, essa é a questão.
A resposta da cientista da computação Maria das Graças Volpe Nunes pode surpreender os colegas que investigam o campo do processamento de linguagem natural ou linguística computacional, área do conhecimento à qual ela se dedica há quase quatro décadas. Mas foi trabalhando na desafiadora tarefa de tentar ensinar máquinas a dominarem a linguagem humana, que essa professora aposentada do ICMC, carinhosamente conhecida como Graça, compreendeu o que há de indomável na língua e se encantou ao vislumbrá-la assim.
“Minha reverência à língua embaça os resultados que eu mesma persegui e alcancei. Pode o mundo inteiro ansiar a interação pseudo-humana com uma máquina, mas não eu. Não mais. Podem as máquinas falar sua língua e interagir com o homem, mas não a minha língua” ― é assim que Graça escreve em Palavras & Bytes, texto que é parte do livro Sobre Tudo Um Pouco, coletânea de contos, crônicas e outras narrativas que a escritora editou e publicou em maio de 2021. É uma pequena amostra do que a linguagem de Graça é capaz ao promover reflexões, entrelaçando aprendizados de vida às questões atuais que mais lhe preocupam.
No texto, ela define: “A língua humana não é apenas um mecanismo de comunicação, ela é muito mais do que isso. É cultura, é expressão, é realidade.” Graça sabe que a linguagem é também parte do que nos faz sujeitos, algo que nos constitui e que constituímos a um só tempo. Ao nos tornarmos autores de nossos textos, nós nos tornamos também frutos desses textos, recriando a nós mesmos.
Talvez seja por isso que, depois da aposentadoria, em 2013, Graça tenha mergulhado na arte da escrita. Era preciso registrar seu modo particular de dizer, encontrar sua própria voz, sua própria linguagem. Talvez porque a única forma de domar aquela língua que escapa às máquinas é, na verdade, deixando-se dominar por ela.
“Robôs poderão, sim, entender muito da linguagem humana; poderão também se fazer entender ao se expressarem como humanos. Mas para dominá-la, tal como nós, é preciso viver como nós, nascer, crescer, evoluir como nós, apreendendo e transformando a realidade, tendo a língua como seu principal instrumento. Serão, no máximo, como estrangeiros apátridas com ótimo domínio da língua, mas nenhum conhecimento do mundo que ela define.”
No princípio era o verbo ― Nos primórdios das pesquisas em processamento de linguagem natural, quando Graça começou a atuar na área na década de 1980, era preciso fornecer um arsenal de informações sobre a língua portuguesa para que as máquinas pudessem processá-la, seja para interagir com humanos ou para corrigi-los. Parte desse trabalho implicava na classificação das palavras de acordo com as dez classes gramaticais: verbo, substantivo, adjetivo, pronome, artigo, numeral, preposição, conjunção, interjeição e advérbio.
Era assim que se construía um revisor automático capaz de identificar, por exemplo, quando um verbo não estava sendo conjugado adequadamente e podiam ser sugeridas correções. Nesse tempo, cada decisão tomada pelas máquinas era passível de verificação: quando o revisor identificava um problema na escrita, bastava entrar no código do programa e ver, passo a passo, o que havia levado à classificação do erro. Se fosse necessário aprimorar algo, bastava os programadores acessarem as tabelas, textos e demais recursos disponíveis nos bancos de dados, onde o conhecimento da língua havia sido registrado.
O dilema é que nem todo o conhecimento era passível de ser representado nesses bancos de dados. Separar as palavras em classes gramaticais é uma tarefa relativamente simples, mas como ensinar uma máquina a compreender as sutilezas da língua portuguesa e interpretar os muitos significados que um texto pode ter?
Pense em como uma criança aprende a falar a língua materna. Não é preciso ensinar a ela as classes gramaticais. Ela aprende a partir da experiência cotidiana de uso da língua, do contato com outros falantes, das interações socioculturais estabelecidas. Se as pessoas ao redor falam “nós vamos”, é muito natural que ela repita essa construção quando quiser dizer a mesma coisa. A criança só será apresentada a verbos, substantivos, adjetivos, pronomes, artigos, numerais, preposições, conjunções, interjeições e advérbios muito tempo depois.
Por que, então, não usar esse mesmo modelo para ensinar as máquinas? Porque era preciso, para isso, equipamentos capazes de processar grandes quantidades de dados. Isso tornaria viável dar outra munição às máquinas: uma infinidade de textos para que identificassem, por si mesmas, os padrões da língua e pudessem repeti-los, tal como uma criança aprendendo a falar.
― Com o avanço tecnológico de hardware e dos diferentes métodos estatísticos e neurais para aprendizagem de padrões e previsões por modelos, a representação do conhecimento em quase todos os sistemas de inteligência artificial, incluindo os de processamento da linguagem natural, foi substituída por modelos aprendidos a partir de imensas quantidades de dados.
Graça explica que essa transformação foi o que impulsionou o incrível desenvolvimento das atuais soluções automáticas para a língua humana, hoje presentes em aplicativos como WhatsApp, Telegram, em plataformas de tradução automática como Google Tradutor, em soluções conversacionais do tipo chatbots e nas assistentes virtuais.
― É difícil saber quanto tempo durará esse modelo de sistema inteligente ou se ele é definitivamente a solução para os desafios de se emular o comportamento humano nas máquinas. O fato é que essa aparente solução final traz novos e importantes problemas. Atualmente, esses modelos são incapazes de se justificar, ou seja, não conseguem explicar como chegaram a um determinado resultado; não há um raciocínio associado; são caixas-pretas. Por outro lado, esses sistemas são cada vez mais autônomos, tomam decisões sem recorrer a humanos. E o dilema está posto: na eventualidade de uma consequência indesejada ou criminosa, quem se deve responsabilizar? A discussão sobre a ética dessa tecnologia inteligente, que já permeia toda nossa vida, está na pauta do dia da sociedade como um todo. Em particular, a comunidade de processamento de linguagem natural tem muito a dizer no que se refere aos dados linguísticos, afinal, grande parte desses sistemas autônomos tomam suas decisões a partir de alguma forma linguística.
Diante do avanço científico da área que ajudou a construir no Brasil, Graça não se deslumbra. A trajetória que percorreu leva a enxergar o futuro com preocupação.
― Tudo virou aprendizado de máquina. Porque é mais fácil, mais abrangente. Lógico, depende dos dados que eu forneço, mas se eu cuidar disso certinho, o sistema vai aprender muito melhor até do que o ser humano. Mas aí qual o problema? Não consigo mais explicar por que o sistema tomou a decisão, não faço a menor ideia! Qual foi o exemplo ou os exemplos que ensinaram isso pra ele? Não sei! O comportamento desses algoritmos sempre surpreende, mesmo quem os construiu.
Em busca de promover essas reflexões, Graça tem ministrado palestras para alunos de graduação e de pós-graduação do ICMC. Na opinião dela, os pesquisadores da computação têm obrigação de se conscientizarem sobre os impactos que suas ações podem ter no mundo e atuar para a formação de estudantes mais críticos.
― Eu falo para os alunos: pessoas da minha geração ficavam imaginando como seria o futuro, e a gente tinha os filmes de ficção científica, da década de 1970, que são incrivelmente atuais. Hoje, eu sei como é o futuro. Então pergunto para eles: e vocês, sabem como vai ser o futuro? Vocês já nasceram nessa época digital, informatizada, o computador já faz parte da vida de vocês desde o berço. E aí, o que vocês pensam do futuro? A gente tem que refletir sobre o caminho que estamos percorrendo e o computador está no centro disso. É esse o caminho que a gente quer? A gente só está pensando nos problemas depois que eles surgem. Não está dando tempo de pensar no que é que pode acontecer porque a tecnologia tem uma velocidade que é incompatível à nossa de refletir, de pensar. Até porque a gente não tem capacidade de adivinhar muita coisa sobre o que vai acontecer. Os profissionais de computação têm um papel muito relevante porque, pelas mãos deles, passam essas coisas. E cabe a nós, formadores desses meninos e meninas, chamar sua atenção desde cedo. Fazer deles não só programadores eficientes, mas pensadores.
Professora da USP aos 21 ― Preocupar-se com a formação dos futuros profissionais da computação é algo que Graça faz desde os 21 anos, quando começou a dar aulas no ICMC. Após concluir o Bacharelado em Ciências da Computação na UFSCar, Graça decidiu continuar os estudos na USP. Era boa aluna, gostava de estudar, tinha realizado vários projetos de iniciação científica e a ideia de permanecer na academia a atraía. Além disso, o namorado, o matemático Wagner Vieira Leite Nunes, que conheceu em 1978 na UFSCar, também havia decidido fazer mestrado no ICMC.
Então, em outubro de 1981, quando era uma das mestrandas orientadas pela professora Maria Carolina Monard, surgem vagas para contratação temporária de dois professores como auxiliares de ensino no Instituto, um na área de matemática e outro na de computação. Foi quando a professora Maria Carolina se viu diante de uma difícil decisão: indicar uma de suas alunas de mestrado para ocupar essa vaga.
― Depois a professora me contou que não dormia à noite. Ela achava que duas mestrandas eram absolutamente iguais em relação à capacidade, e acabou me escolhendo, mas poderia ter escolhido a outra. Para você ver como é, né? Tudo isso gera um efeito: a outra aluna acabou abandonando o mestrado, tornou-se funcionária de um banco e foi morar em outra cidade. Talvez, se tivesse sido contratada, ela teria uma vida como a minha.
Um ano depois da decisão de Maria Carolina, o que era uma vaga temporária se transformou em um contrato por tempo indeterminado. Naqueles primeiros anos como professora, Graça foi homenageada várias vezes pelos formandos. Adorava dar aulas e tinha um feedback muito positivo dos alunos. Lembra-se de ter sido professora de alunas que, posteriormente, tornaram-se professoras no ICMC como Renata Pontin, Agma Traina, Maria Cristina Ferreira de Oliveira e Maria da Graça Campos Pimentel.
Entre os acertos, desacertos e vai-e-vens inexplicáveis da vida, Graça finalizou o mestrado no ICMC e escolheu fazer o doutorado na PUC do Rio de Janeiro, ao invés de ir para a Inglaterra, onde tinha sido aceita no Imperial College. O que parecia ser um plano B deu muito certo:
― Como a PUC-Rio tinha o único programa de doutorado em computação no país à época eu conheci muita gente que se formou lá e que, depois, se espalhou pelo Brasil todo, e isso me abriu muitos caminhos. Porque onde quer que eu fosse, eu conhecia alguém, ou se precisasse de alguma coisa, eu sabia quem poderia me ajudar e onde se encontrava. Então, para mim, foi muito fácil depois transitar pelas universidades brasileiras.
A escolha pela PUC também implicou na possibilidade de continuar atuando na área de inteligência artificial e de mergulhar mais no campo do processamento da linguagem natural. Foi lá que Graça teve contato com outra pioneira da área, a professora Clarisse Sieckenius de Souza, que a co-orientou no seu doutorado.
Ao concluir o doutorado e voltar a São Carlos, em 1991, Graça encontrou dois outros professores que estavam atuando nesse campo: Sandra Aluísio, no ICMC, e Osvaldo Novais de Oliveira Júnior, no IFSC. A união de forças levou o grupo a aceitar o desafio de criar o primeiro revisor automático para o português, o ReGra, projeto que Graça coordenou de 1993 a 2008.
― Andorinha sozinha não faz verão. Por exemplo, no caso do processamento de linguagem natural, se eu quisesse fazer um trabalho muito interessante para o inglês, até poderia conseguir porque existia muita coisa para o inglês disponível. Mas, para o português, não era assim, assim como não é até hoje. Os recursos precisavam ser construídos, necessitávamos de gente para estudar a língua, para ver como representá-la, o que dava para fazer, o que não dava… Ao compor um grupo que era financiado por uma empresa como a Itautec, que nos fornecia dinheiro, passamos a ter condições de remunerar os alunos através de bolsas. E eu precisava de gente de linguística, de programador com experiência, enfim. Com isso, o Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional (NILC) do ICMC se tornou um grupo de pesquisa muito relevante.
Da biblioteconomia à computação ― É provável que nenhuma sentença sintetize tão bem a trajetória de Graça quanto esta: “Tudo que eu fiz está ligado à linguagem. Tudo”. Desde a primeira escolha do curso superior, que era relacionado, evidentemente, aos livros e ao universo das letras: biblioteconomia.
Era 1976 e a jovem nascida em Sertãozinho se encantou por São Carlos e se decepcionou com o curso de biblioteconomia. Voltou para casa decidida a fazer cursinho e a retornar à capital da tecnologia. Perdida em meio às opções de graduação, fez um teste vocacional e o caminho era claro agora: exatas. Mas que curso escolher?
― Eu já sabia que existia computação, mas nunca tinha visto um computador na minha frente, não fazia a menor ideia! Era uma coisa muito futurista e isso me vislumbrava, assim como a muita gente. Ah, eu quero! Achava que todo mundo ia me admirar se fizesse aquilo porque ninguém sabia o que era, eu também não.
No vestibular, foi aprovada em Informática na UFSCar e em Estatística na Unicamp e no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, em São Paulo. Seguiu o plano e optou por retornar a São Carlos. Dessa vez, não houve decepção.
Oitava filha da professora de educação básica Ernesta Sicchieri Volpe e do comerciante Guilherme Volpe, a caçula Graça lembra-se da morte prematura do pai. Ele estava com 60 anos e assistia a uma partida de futebol entre o Palmeiras e o Comercial de Ribeirão Preto, no dia 3 de outubro de 1965. A emoção depois de um dos gols da partida foi tamanha que Guilherme sofreu um infarto fulminante e faleceu em campo, deixando Ernesta com oito filhos para criar, três homens e cinco mulheres.
― Minha mãe era uma mulher muito além do tempo! Uma mulher vaidosa, sempre arrumada e bem vestida, foi vereadora e fundou o clube da velha guarda da cidade.
Em projeto de lei ordinária de 1996, a Câmara de Vereadores de Sertãozinho homenageou Ernesta, nomeando o Centro de Apoio Integrado à Criança da cidade com o nome da professora.
― Se você visse as fotos da festa de 90 anos dela, parecia que era uma debutante!
Ernesta só se despediu da vida aos 99 anos, em 2013. Na crônica Gratidão, que faz parte da coletânea Sobre Tudo Um Pouco, Graça revela: “sou muito grata pela criação que tive na minha família, não obstante todos os defeitos e problemas ali contidos. Exatamente por causa deles tive oportunidade de aprender a valorizar nossa capacidade de superar obstáculos e nos manter unidos. Sou mais grata ainda pela liberdade que minha mãe me concedeu conforme eu crescia. Liberdade que em alguns momentos eu confundi com desatenção, mas depois me dei conta de sua importância na minha formação.”
Indefinível ― Dizer quem é Graça em palavras é tarefa hercúlea. Cientista da computação, pesquisadora em linguística computacional, professora, orientadora, mãe, esposa. Graça é muitas em uma só, como ela mesma escreve em outra crônica (Ser Muitas) do livro Sobre Tudo Um Pouco: “Não saberia definir a mim mesma. E nem quero, pois isso tiraria toda a graça da complexidade do meu ser. Tenho sido uma menina indefesa e graciosa, uma criança levada, uma mulher maliciosa, outra, malvada, uma mocinha sensível, outra, desiludida, um ser humano amargo, outro, apaixonado, e por aí vai. Essas facetas se repetem, indefinidamente, de modo que qualquer definição me cabe e é imprecisa.”
Indefinível e indomável como a linguagem, Graça conta sua história com alegria e sabedoria. Ela faria tudo de novo se pudesse. Casaria-se com Wagner novamente, em 1983, e daria a luz a Bruno, em 1994. Agora já formado em Psicologia.
“Cada um sabe a dor e a alegria de ser o que é. Quando jovem, eu tinha uma camiseta com esses dizeres. Achava que era muito profundo no que dizia respeito a minha pessoa. Mas hoje acho que me cabe bem. Parece difícil decidir o que ser e o que não ser, ainda mais depois de 50 anos testando todas as possibilidades. Mas não é. Há algo mais forte que nos impele a ser assim e não assado. Ninguém consegue fingir o tempo todo. E ser muitas tem um preço alto. Ser muitas pode ser sinal de insegurança, de não saber qual escolher, de não conseguir ser uma só. Ser muitas atrai mais censura do que admiração, mais distância do que aconchego. O lado bom da história é que a multiplicidade traz a liberdade. Ser livre para sentir o que tiver que ser sentido, para ter o prazer de ser efêmero o momento de ser aquilo que se é. E, para isso, é preciso suportar as consequências de ser muitas para ter o direito de não ser única.”
Texto: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC-USP
Vídeo: Renato Francoi Amprino – Assessoria de Comunicação do ICMC-USP
Fotos: Assessoria de Comunicação do ICMC-USP
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