Agência USP de Inovação completa 20 anos de atuação na proteção do patrimônio intelectual da Universidade

Especialistas explicam as funções da instituição e destacam algumas das inovações de sucesso da USP e que trouxeram benefícios à sociedade

chapéu que indica que a matéria faz parte do Momento Tecnologia

 

Edifício vazado, com fachada de vidro escrito Auspin em azul, na frente do qual podem-se ver várias árvores

A Auspin tem como função principal gerir e proteger o portfólio de propriedade intelectual da USP – Foto: Thais Santos

No mês de fevereiro, a Agência USP de Inovação (Auspin) comemorou 20 anos de existência. Responsável pelo registro de patentes e transferência de tecnologias produzidas na Universidade, a entidade celebra duas décadas de atuação na proteção do patrimônio intelectual da USP. De acordo com Luiz Catalani, coordenador da agência, a trajetória da instituição, que se originou de iniciativas da USP voltadas à proteção e promoção de patentes, reflete uma mudança significativa na forma como as universidades lidam com a produção de conhecimento e suas implicações para a sociedade e a economia.

Homem branco, cabelos grisalhos, usando óculos

Luiz Catalani – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Histórico

De acordo com Catalani, a criação de leis para a proteção de invenções teve marcos importantes, como a Lei de Patentes de 1958. Com o pós-guerra, a patenteabilidade passou a ser reconhecida como fundamental para a propriedade intelectual, impulsionando tanto a indústria quanto o ambiente acadêmico. Legislações internacionais, como o Bayh-Dole Act (1980) nos EUA e a Lei de Inovação Francesa (1999), inspiraram o modelo brasileiro e culminaram na Lei de Inovação de 2004.

Na USP, a inovação começou com o GAD (Grupo de Apoio ao Desenvolvimento de Inventos) na década de 1980, que entendia a inovação como parte da extensão universitária. Com a evolução dessa visão, foi criada, em 2005, a Agência USP de Inovação, que rapidamente se tornou uma referência na gestão da propriedade intelectual.

Função

Segundo o coordenador, a Auspin tem como função principal gerir e proteger o portfólio de propriedade intelectual da USP. A instituição cuida do depósito de patentes, marcas e softwares, além da proteção de cultivares no agronegócio. A agência também atua na transferência de tecnologia, formalizando convênios para que as inovações da USP possam ser exploradas por empresas. “É preciso enfatizar que a Auspin não lida com direitos autorais de textos, que são responsabilidade da Biblioteca Nacional, nem de direitos autorais de músicas”, esclarece.

Catalani enfatiza que qualquer lucro gerado por essas inovações deve beneficiar tanto os inventores quanto a sociedade paulista, que é responsável por financiar a Universidade. Segundo ele, quando a USP cria uma invenção sem parceiros externos, a propriedade intelectual pertence à Universidade, e sua comercialização ocorre por meio de licitação competitiva para garantir transparência.

Empreendedorismo

Outro ponto ressaltado pelo coordenador é o incentivo ao empreendedorismo inovador. A USP oferece suporte ao desenvolvimento de empresas de base tecnológica, transformando conhecimento científico em novos produtos e processos. Ele destaca que a Universidade conta com quatro incubadoras de empresas, responsáveis pelo estímulo aos empreendedores no desenvolvimento de inovações. Dentre elas, a incubadora USP-Ipen ganha destaque devido aos seus 25 anos de existência.

“A Universidade busca conectar empreendedores a agências de fomento, como Fapesp, Finep e CNPq, além de programas de aceleração e incubação. Para ampliar esse impacto, a USP está expandindo suas incubadoras para outros campi, como São Carlos, Lorena e Piracicaba, permitindo que mais alunos e pesquisadores transformem suas inovações em empreendimentos viáveis”, avalia.

Homem de cabelos brancos falando num púlpito para pessoas na platéia

O coordenador da Auspin, Luiz Catalani, durante o evento comemorativo dos 20 anos da Auspin – Foto: Divulgação/Auspin

Pesquisa e inovação

Conforme Paulo Nussenzveig, pró-reitor de Pesquisa e Inovação da USP, nos últimos três anos, a Pró-Reitoria intensificou sua atuação para reduzir as barreiras que dificultam o desenvolvimento da pesquisa na USP. Para ele, a inovação dentro da USP não trata apenas de transferir tecnologia, mas de integrar diferentes atores desde a concepção de uma ideia até sua aplicação na sociedade.

Homem branco, idoso, cabelos grisalhos, vestindo terno escuro e camisa azul clara

Paulo Nussenzveig, pró-reitor de Pesquisa e Inovação da USP – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

De acordo com o especialista,  o conhecimento se tornou um ativo econômico cada vez mais valioso, que supera muitas vezes os recursos materiais. Ele destaca que a Auspin desempenha um papel central nesse processo, promovendo a conexão entre a Universidade e o setor produtivo, facilitando a criação de startups e estimulando a proteção da propriedade intelectual gerada dentro da USP. Essa aproximação com a sociedade, segundo ele, é essencial para que as descobertas científicas tenham um impacto real e imediato.

“O que a USP vem fazendo é transformar o processo de inovação como sua missão e seu objetivo principal. A inovação e o conhecimento seguem como motores para que a Universidade amplie sua contribuição para a sociedade, sempre com um olhar voltado para o longo prazo”, diz.

Futuro

Após três anos à frente da Pró-Reitoria, Nussenzveig destaca o potencial da USP e a excelência de sua produção científica. Um dos grandes diferenciais da USP, segundo o pró-reitor, é sua capacidade de fomentar pesquisas interdisciplinares. Com uma estrutura consolidada e um corpo docente altamente qualificado, ele afirma que a USP continua recrutando talentos jovens e buscando respostas para os desafios da Universidade.

“Daqui a 10, 15, 20 anos, poderemos avaliar com mais precisão o impacto desse período na Pró-Reitoria. O que fazemos hoje é preparar o caminho para o futuro, garantindo que a USP continue sendo referência mundial na geração de conhecimento e inovação”, conclui Nussenzveig.

Parcerias pública e privada

Conforme Raul Gonzalez, pró-reitor adjunto de Inovação e professor da Escola Politécnica (Poli) da USP, ao longo dos últimos 20 anos, a Agência USP de Inovação desempenhou um papel fundamental na transformação da pesquisa acadêmica em soluções aplicáveis para a sociedade. Sua importância, segundo ele, está diretamente ligada à evolução do conceito de universidade e sua missão ao longo do tempo.

Conforme o docente, a Auspin gerencia a propriedade intelectual da Universidade, incentiva parcerias estratégicas, apresenta tecnologias inovadoras ao mercado e auxilia nos processos de patenteamento. Ele explica que, com o passar dos anos, os processos administrativos foram aprimorados e a evolução das leis possibilitou parcerias mais atrativas com empresas públicas e privadas, resultando em um aumento qualitativo e quantitativo nas patentes registradas. O critério principal da Auspin sempre foi garantir que as inovações desenvolvidas pela Universidade tivessem o maior impacto social possível.

Homem branco, ainda jovem, de barba e bigode, vestindo terno escuro, camisa azul e gravata vermelha

Raul Gonzalez, pró-reitor adjunto de Inovação da USP – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Projeto Inspire

Durante a pandemia de covid-19, Gonzalez coordenou, juntamente com o professor Marcelo Zuffo, uma das inovações de maior sucesso, que contou com a proteção intelectual da Auspin. Trata-se do Projeto Inspire, um ventilador respiratório emergencial para suprir a demanda dos hospitais nos períodos mais graves da pandemia. Em resposta ao momento de urgência, os pesquisadores da USP desenvolveram rapidamente os dispositivos para que fossem viáveis diante da escassez de ventiladores pulmonares, uma vez que a cadeia de suprimentos estava interrompida.

O projeto reuniu especialistas em eletrônica de microprocessadores e ventilação pulmonar, contando com apoio financeiro e logístico de entidades governamentais, empresas privadas e doações individuais. O desenvolvimento envolveu diversas frentes, como certificação do equipamento, treinamento de profissionais da saúde e suporte logístico para transporte e instalação dos dispositivos.

De acordo com o especialista, o projeto é resultado de décadas de pesquisa da Escola Politécnica e da Faculdade de Medicina da USP e contou com a contribuição de diversas organizações, como a Associação dos Engenheiros Politécnicos, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas e o Senai.

“Além disso, entidades como a Procuradoria da USP, a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e a Anvisa cumpriram rapidamente seus papéis para permitir que o equipamento fosse disponibilizado com a agilidade que a situação exigia. A Marinha do Brasil também foi essencial, pois apoiou o estoque, a engenharia e a montagem dos aparelhos”, esclarece.

Diferenciais

Para garantir viabilidade de produção durante a pandemia, os pesquisadores utilizaram componentes de diferentes setores industriais, como o automotivo, o aeronáutico, o robótico e o da saúde. Essa abordagem, segundo o docente, permitiu a produção nacional sem depender de insumos importados. Além disso, o sistema de controle simplificado dos microprocessadores dispensou componentes eletrônicos complexos e redutores mecânicos caros.

De acordo com Gonzalez, o equipamento possui cinco modos de ventilação, foi projetado para UTIs e testado em 40 pacientes com autorização do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Uma versão simplificada, com apenas três modos, foi aprovada pela Anvisa e distribuída a 370 hospitais, totalizando 970 unidades entregues.

Impacto e futuro

A distribuição dos ventiladores auxiliou hospitais em 16 Estados, sendo que metade das unidades foi destinada a São Paulo. As unidades de saúde haviam ingressado numa fila de espera organizada pela Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo para receber os equipamentos, que foram essenciais no suporte respiratório dos pacientes críticos e também utilizados para transporte dentro dos hospitais, otimizando o atendimento.

Com o fim da pandemia, a autorização da Anvisa foi encerrada, mas Raul Gonzalez destaca que os dispositivos entregues aos hospitais ainda podem ser utilizados para pesquisa e treinamento de profissionais. Ele explica que o projeto continua evoluindo e vem incorporando inovações como conectividade 5G e comunicação de longa distância.

“Atualmente, estão sendo feitos os procedimentos de transferência de propriedade intelectual para uma startup privada. Porém, esses procedimentos têm que ser feitos com cuidado, porque o ventilador foi desenvolvido com recursos públicos e privados. Então, essa startup tem que ter uma função social dentro do seu regimento”, avalia.

Vonau Flash

Outra inovação de sucesso que contou com o apoio da Auspin é o Vonau Flash, um medicamento para o tratamento de náuseas e vômitos. O diferencial do produto está na sua fácil administração, pois não necessita de água para ser ingerido. O comprimido é colocado na boca e dissolve-se rapidamente na saliva, facilitando seu consumo por pacientes que sofrem com os sintomas.

Homem branco, meia idade, barba e bigode, usando óculos e vestindo camisa de cor azul

Humberto Ferraz, diretor da FCF – Foto: FCF/USP

Segundo o professor Humberto Ferraz, atual diretor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP e responsável pelo desenvolvimento do medicamento, o Vonau Flash foi inicialmente pensado para pacientes oncológicos em tratamento com quimioterapia, devido aos frequentes episódios de vômito associados a esse tipo de tratamento. Contudo, sua utilidade se mostrou ainda mais ampla, abrangendo pediatria, pacientes com labirintite e indivíduos que sofrem de enjoo em viagens de carro, ônibus ou barco.

Parceria

De acordo com o especialista, o Vonau Flash foi desenvolvido por meio de uma colaboração estratégica entre a USP e a farmacêutica Biolab. A empresa trouxe à Universidade o desafio de criar uma nova apresentação para o fármaco ondansetrona, responsável pelo combate às náuseas, buscando uma solução mais prática e eficaz para os pacientes. A equipe da USP, que já trabalhava com tecnologia de comprimidos orodispersíveis, isto é, que se dissolvem na boca, se dedicou ao projeto e desenvolveu uma formulação com alta estabilidade e fácil produção.

A farmacêutica investiu recursos no projeto e pagou royalties à USP, que os reverteu para bolsas de pesquisa, compra de equipamentos e aprimoramento de laboratórios, como o Laboratório de Desenvolvimento e Inovação Farmacotécnica (Denfar) da Faculdade de Ciências Farmacêuticas. Em contrapartida, os pesquisadores ficaram responsáveis por produzir ondansetrona em formato orodispersível.

Importância da inovação

De acordo com Ferraz, a facilidade de administração do Vonau Flash representa um grande avanço para pacientes que enfrentam dificuldades em ingerir medicamentos convencionais ou que estão em locais em que não há disponibilidade imediata de água. Além do impacto positivo para os pacientes, o diretor explica que a parceria entre universidade e setor privado demonstra o potencial da ciência acadêmica para gerar inovações de grande alcance.

“Toda a experiência que decorreu dessa parceria foi muito importante, porque foi possível que entendêssemos como trabalhar com uma empresa que vem atrás e se interessa por nossa pesquisa e por nossos produtos. Então, a Universidade aplicar todo o seu conhecimento e levá-lo para a sociedade em formato de produto é um dos principais pontos”, ressalta.

Canabidiol Prati-Donaduzzi

Um outro caso de destaque da Universidade refere-se ao fitofármaco produzido a partir do canabidiol (CBD), que é resultado de uma parceria da USP com a empresa farmacêutica Prati-Donaduzzi. A empresa foi responsável pela importação e fornecimento do canabidiol aos pesquisadores, que, em contrapartida, desenvolveram as pesquisas e o produto final.

Conforme Francisco Guimarães, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e especialista em farmacologia, a pesquisa das propriedades terapêuticas do canabidiol no País remonta aos anos 1970, quando o professor Antônio Zuardi, da FMRP, trouxe essa linha de investigação para Ribeirão Preto, consolidando um grupo de especialistas que se tornaria referência internacional.

Homem branco, meia idade, cabelo escuro bem ralo

Francisco Guimarães – Foto: FMRP/USP

As pesquisas da equipe, que atualmente conta com a participação dos professores José Alexandre Crippa e Jaime Hallak, atraiu o interesse da Prati-Donaduzzi, que procurou a USP há cerca de dez anos para estabelecer uma colaboração. Como parte da parceria, a empresa financiou as pesquisas e construiu um centro de investigação de canabinoides na Universidade e, em contrapartida, os pesquisadores continuaram as pesquisas na área.

Aplicação

Segundo Guimarães, atualmente, a principal aplicação terapêutica do canabidiol, reconhecida por agências reguladoras no Brasil, Estados Unidos e Europa, é no tratamento de síndromes epilépticas raras, especialmente em crianças. No entanto, estudos sugerem que o CBD pode ter potencial para tratar transtornos neuropsiquiátricos, como ansiedade, estresse, Parkinson e autismo.

Outro medicamento já aprovado para uso terapêutico no Brasil é o Sativex, um spray que combina canabidiol e THC. Inicialmente desenvolvido por uma empresa inglesa e posteriormente adquirida por uma companhia canadense, o Sativex é indicado para o tratamento de dores e espasticidade associadas à esclerose múltipla. Segundo o docente, a combinação de canabidiol com concentrações controladas de THC potencializa os efeitos terapêuticos da substância.

Apesar dos avanços, o professor Guimarães enfatizou a necessidade de mais pesquisas antes da ampliação das indicações do canabidiol. “Entre acreditar que ele pode ser eficaz e demonstrar isso cientificamente, há uma grande diferença. Precisamos de estudos multicêntricos e com amostras amplas para comprovar sua eficácia em outras condições. O medicamento não deve ser utilizado sem indicação médica, especialmente para tratamentos que ainda estão sendo estudados”, concluiu.

Benefícios para a sociedade

Diante de toda a contribuição da Agência USP de Inovação para a Universidade e para a sociedade, o coordenador Luiz Catalani reforça que a ciência básica tem como motivação a curiosidade pura, que deve ser usada para o benefício da sociedade. Ao mesmo tempo, ele alerta para o risco de o Brasil exportar conhecimento sem garantir que ele seja utilizado internamente para gerar benefícios ao País.

“Se o Brasil não aplicar o conhecimento que produz, acabamos comprando de volta os produtos criados a partir desse saber. Então os professores e pesquisadores têm essa responsabilidade de olhar para o produto ou conhecimento de seus laboratórios e observar se esse estudo tem alguma aplicação que pode ser benéfica à sociedade”, conclui.

Por Julio Silva – Jornal da USP

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