Por Miguel Buzzar, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP
Brasília! Praça dos Três Poderes, como defini-la?
Para alguém, como eu, que em 1964 entrou no primeiro ano do antigo primário, Brasília era a nova capital do País. A capital do País sob o Regime Militar. O único regime que conhecia. Se é que se pode dizer que com 6 anos eu conhecia alguma coisa em termos políticos. Mas, também, era a capital moderna, projetada por Oscar Niemeyer, que – independente de já prematuramente apreciar os seus projetos – só pelo fato de estar na última página do Álbum de Figurinhas Coisas Nossas, ao lado de Pelé, Maria Ester Bueno e Biriba, era interpretado como alguém a ser admirado.
A arquitetura, no ginásio e depois no colegial, foi adentrando na minha vida e, com ela, Brasília. Com colegas, em conversas muito pretensiosas, refletíamos se um dia teríamos a oportunidade de projetar uma nova capital, uma nova Brasília.
Como estudante de Arquitetura e Urbanismo, a obra de Niemeyer era admirada, mas vista com restrições. A segunda metade dos anos 1970 conheceu a retomada do movimento estudantil e, na sequência, o movimento social que levou ao fim da ditadura militar. O comprometimento com a urgência social do período reordenou as referências arquitetônicas. Artigas, Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, e a disputa pela função social da arquitetura, readquiriam destaque.
Duas décadas. Greves de trabalhadores, eleições de governadores e prefeitos, campanha das Diretas, eleições para presidente, nova Constituição, impeachment de Collor, programas sociais, neoliberalismo etc. Depois de muita luta e esperança, Brasília e a Praça dos Três Poderes experimentaram o que o projeto de Niemeyer procurou representar e propiciar.
1º de janeiro de 2003: uma multidão nunca antes vista preencheu a Praça dos Três Poderes para comemorar a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, eleito por uma coligação liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Preencheu a Praça e boa parte da Esplanada dos Ministérios, aquele espaço que parecia desproporcional, próprio para fotografias, mas difícil de permitir que um sentimento de pertencimento nele se expressasse.
A subjetividade do sentimento e a objetividade de um fato, a eleição de Lula, se encontraram e atribuíram àquele espaço uma qualidade antes não vista, a Praça dos Três Poderes transformou-se em uma PRAÇA, e o monumento que não tinha porta foi franqueado à população.
Bolsa família, aumento de renda, programas sociais efetivos, estabilidade econômica e social marcaram os anos seguintes. Em paralelo, tentativa de desestabilização do governo – mensalão, reeleição de Lula, eleição de Dilma Rousseff, a primeira mulher eleita presidente, reeleição de Rousseff –, até que, em 2013, manifestações que se iniciaram legítimas, assim espero, foram capturadas por uma concepção política reacionária, travestida de vestal da moralidade da coisa pública. O que assistimos, até o golpe do impeachment, foi uma caçada ao mandato popular de Dilma Rousseff, seguida de outra caçada, não menos violenta, na qual o aparelho de Estado do Judiciário brasileiro foi posto a serviço da perseguição e condenação de Luiz Inácio Lula da Silva.
As instituições brasileiras sempre estiveram a serviço da elite econômica, nada de novo, mas a elite poucas vezes se sentiu tão acuada, mesmo que não estivesse sendo questionada em suas bases econômicas – a propriedade privada dos meios de produção. Mesmo assim, mostrou, como poucas vezes o fez, suas garras e dentes afiados. Certo que nunca um partido político com o perfil do PT havia chegado ao poder, e antes havia conquistado uma autoridade política junto aos trabalhadores, superando os vários populismos de nossa história. Isto era (e é) inaceitável para a elite. A ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, nenhuma novidade. De forma por vezes não muita clara, o PT, seus governos e a maioria da população questionavam a ideologia dominante. Isto era inaceitável. Com toda sorte de manipulação de informações, com todo aparato do Judiciário, com toda mídia impressa e televisiva e com uma rede de ódio montada através dos meios eletrônicos que visavam destruí-lo, Luiz Inácio Lula da Silva continuava à frente nas pesquisas para as eleições presidenciais de 2018. Isto era inaceitável. Lula foi condenado, preso e impedido de concorrer às eleições presidenciais através de um processo, cuja agilidade jurídica nunca antes havia sido vista no país dos crimes de colarinho branco prescritos.
A elite e seus prepostos conseguiram o que queriam: impedir, mesmo que isso não estivesse na pauta dos governos petistas, o avanço da consciência política dos trabalhadores e, assim, sustar a deterioração da ideologia dominante. Bolsonaro não foi um erro, não foi um equívoco, um efeito imprevisto de uma campanha reacionária que não soube mensurar o prognóstico. Foi a exata medida para aplicar uma política antissocial e remontar uma ideologia dominante que, mesmo aos olhos de uma direita esclarecida, ínfima no País, é totalmente reacionária. Uma ideologia que cumpre um papel muito claro, dilapidar todos os avanços políticos e republicanos que um dia a burguesia se propôs a realizar no século 19, e que no Brasil nunca se completou, a separação entre Estado e Igreja, o poder descentralizado e equilibrado, dividido entre Executivo, Legislativo e Judiciário, a igualdade perante a lei, o bem comum acima de interesses particulares e de classes. Essas bandeiras, hoje, após o massacre ideológico vivido nos últimos anos, são coisas de comunistas, de anticristos a serviço de algum demônio. Fomos apresentados à barbárie rediviva, e nela tivemos que sobreviver por quatro anos.
Quatro longos e terríveis anos se passaram. As raízes do PT, mesmo que em grande parte alicerçando apenas a figura de Lula, o que não deixa de ser um problema, mostraram-se profundas. Com todos os ataques, a ideologia da classe dominante não conseguiu cegar a lembrança das conquistas sociais.
1º de janeiro de 2023: novamente uma multidão preencheu a Praça dos Três Poderes para festejar a terceira posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Uma multidão menor que a de 2003, mas que preencheu a praça e boa parte da Esplanada dos Ministérios, marcando a esperança de um novo ciclo político. A Praça dos Três Poderes, novamente, transformou-se em uma PRAÇA. A praça do povo brasileiro representado nas figuras de Aline, negra e mãe de sete filhos, 33 anos e trabalhadora na coleta de material reciclável desde os 14, militante do Movimento Nacional de Catadoras; do cacique Raoni Metuktire, 90 anos, defensor da preservação da Amazônia; de Francisco, menino negro de 10 anos, morador da periferia de São Paulo e campeão paulista de natação; de Murilo de Quadros Jesus, 28 anos, professor bolsista de português na Bluefield College, nos Estados Unidos, formado em Letras na UTFPR; de Jucimara Fausto dos Santos, cozinheira da Associação dos Funcionários da Universidade Estadual do Maringá, e de Flavio Pereira, artesão de 50 anos, que esteve na vigília durante os 580 dias em que Lula permaneceu preso em Curitiba.
Novo ciclo?
A realidade não nos deixa enganar. Uma semana depois da posse, em 8 de janeiro, um bando de terroristas e golpistas de direita, em conluio com setores do Exército, da Secretaria de Segurança do Distrito Federal, da Polícia Militar do DF, patrocinados economicamente por parte substantiva da mesma elite que sustentou a política reacionária dos últimos quatro anos, travestidos de populares, adentraram a Praça dos Três Poderes, depredaram e saquearam os edifícios dos Poderes, o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Palácio do Supremo Tribunal Federal.
Os terroristas não são ratos saídos do esgoto. Para eles, o esgoto é todo o País, ou melhor, o País que imaginam como deles. O projeto do qual participam, de forma consciente ou não, tanto faz, é de destruição. Ataques a todas as minorias e às mulheres, desqualificadas e rebaixadas em cada fala do governo que findou. Negacionismo, ataques à ciência, genocídio, como se não bastasse a morte de mais de 700 mil brasileiros na pandemia do coronavírus. Horrorizados, vimos em que condições os Yanomami sobreviveram sob o desmantelamento da Funai. Incêndios criminosos e devastação. Ocupação predatória do território, mesmo que em áreas ambientalmente sensíveis, como no litoral norte paulista. Escravidão, como no caso dos trabalhadores das vinícolas no Rio Grande do Sul. Este amálgama cultural, social e político nutre o projeto reacionário de um país onde a economia deve permitir que os poucos ricos sejam cada vez mais ricos, e só.
Há uma frase, uma fake news, atribuída a Niemeyer: “Projetar Brasília para os políticos que vocês colocaram lá, foi como criar um lindo vaso de flores para vocês usarem como penico. Hoje eu vejo, tristemente, que Brasília nunca deveria ter sido projetada em forma de avião, mas sim de camburão!”.
Tudo indica ser falsa a frase. Mas os políticos reacionários, que foram maioria durante quatro anos no Executivo e no Congresso, aprovaram toda sorte de leis antissociais e conseguiram dar forma a algo que até então não havia se expressado nacionalmente em termos orgânicos: um governo alinhado ao fascismo. Um conjunto de agentes reacionários que, financiados, querem fazer valer a ideologia dominante a todo custo, travestidos de defensores da liberdade, da pátria e de deus.
Esgoto, camburão, bunker, como um economista sugeriu, sem nomear, o remédio para a segurança dos edifícios de Brasília e a fuga para Miami; esse é o mundo dos terroristas de colarinho branco e seus asseclas.
A tentativa de destruição dos edifícios da Praça dos Três Poderes não foi a tentativa de destruição dos edifícios do governo Lula; foi a tentativa de destruição da própria República, e também dos edifícios e de uma Praça que foram projetados para serem os equivalentes espaciais de um Estado-nação que, na virada dos anos 1950 para 1960, imaginava-se caminhar no sentido da construção de uma democracia.
Os caminhos da nossa democracia sempre foram tortuosos, mesmo antes do golpe de 1964 e mesmo com os governos petistas. Se antes não estava claro, agora há de ficar: a democracia só será construída no Brasil contra a elite econômica e social.
8 de janeiro! Engano pensar que os fascistas não conseguiram o que queriam. O golpe de estado não foi vitorioso, os fascistas não ganharam a batalha, mas anunciaram e deixaram claro que os quatro anos do governo Lula seriam uma guerra sem trincheiras. CPI do MST, juros nas alturas, pressão e manobras do centrão (direitão), marco temporal, apologia do agronegócio – motor da economia brasileira (e da destruição ambiental, do trabalho análogo à escravidão, da concentração de renda e de outras mazelas) etc., sem esquecer o que os governos estaduais reacionários, recém-eleitos, e os governos municipais reacionários estão perpetrando neste último período.
Vilanova Artigas, arquiteto, afirmou que a arquitetura contém a necessidade social de representar alguma coisa para a sociedade. A Praça dos Três Poderes e a grande Esplanada do Ministérios têm um sentido social que está em disputa. A Praça dos Três Poderes só será de fato a Praça do Povo quando a comemoração da vitória eleitoral de Lula se traduzir em um cotidiano de transformações presentes em cada praça e logradouro públicos deste país, preenchendo o ar que respiramos. Até lá, não podemos esquecer o 8 de janeiro!
________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)
Por Jornal da USP