Neste Dia das Mães, o ICMC celebra a força de quem concilia maternidade e ciência, enfrentando desafios e abrindo caminhos para as futuras gerações
Desde criança, a professora Cibele Russo sonhava em ser mãe. Criada em uma família grande, com três irmãos e memórias afetivas que moldaram esse desejo, ela nunca duvidou de que teria filhos. O que não imaginava era o tamanho do impacto que esse sonho teria sobre sua carreira científica.
Formada e hoje docente no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, ela passou a viver na pele o que estudos e movimentos como o Parent in Science vêm mostrando com dados: a maternidade ainda é um dos principais fatores de desigualdade na trajetória de mulheres na ciência. “Não são só os seis meses de licença maternidade. Já há estudos que mostram que o impacto da maternidade na carreira acadêmica da mulher pode durar cerca de cinco anos”, conta Cibele, que é mãe de Rafael, de 9 anos, e Viviana, de 6.
Mesmo em um contexto de parentalidade coparticipativa, com o pai presente e atuante, Cibele aponta que os efeitos diretos da maternidade na carreira recaem sobre as mulheres. Um exemplo foi o que ela vivenciou ao solicitar uma bolsa de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “O avaliador escreveu: ‘Ela teve filhos e agora está retomando a produção científica’. Uma justificativa misógina e profundamente preconceituosa”.
Para Cibele, esse tipo de avaliação escancara uma realidade que muitas mulheres vivem em silêncio: “É como se eu tivesse ficado anos em casa sem fazer absolutamente nada. E não é isso. Eu amamentei meus filhos por mais de dois anos, cuidei deles, dava aula, cumpria prazos de artigos, entregava relatórios, orientava alunos. Sim, a produção científica pode diminuir, mas o trabalho nunca parou”.
A mesma justificativa usada pelo CNPQ foi aplicada a outras mães pesquisadoras. Após repercussão do caso na imprensa, a deputada federal Erika Hilton propôs um projeto de lei para proibir critérios discriminatórios contra gestantes, puérperas, mães e adotantes nos processos seletivos de bolsas de estudo e pesquisa, bem como em editais de agências de fomento. A proposta foi sancionada pelo presidente Lula no mês passado.

“Meu filho adora ver meu canal no YouTube, onde dou aulas de estatística. Às vezes, quando me reconhecem na rua, ele fica todo orgulhoso”, declara a professora Cibele | Imagem: Arquivo Pessoal
O cotidiano de quem equilibra todos os pratos – A trajetória de Cibele Russo no ICMC teve início em 2001, quando ingressou como aluna do Bacharelado em Matemática Aplicada e Computação Científica. De lá para cá, construiu uma carreira acadêmica consistente: concluiu o mestrado no próprio Instituto, obteve o doutorado em estatística pelo Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e, em 2011, foi aprovada em concurso para docente do ICMC, onde hoje leciona, orienta e desenvolve pesquisas na área de estatística aplicada.
A maternidade, embora sempre fizesse parte dos seus planos, só se tornou uma possibilidade concreta em 2015, após seu retorno de um estágio de pesquisa no Erasmus Medical Center, em Roterdã, nos Países Baixos. “Fui postergando esse desejo até me sentir mais estabelecida na carreira”, conta. O primeiro filho nasceu no ano seguinte.
Mesmo durante a licença-maternidade, Cibele se viu dividida entre as exigências da vida acadêmica e os cuidados com o bebê. “A carreira continuava acontecendo em paralelo. Os nossos orientandos têm prazos para entregar trabalhos, para defender, os artigos têm datas-limite. Não dava para simplesmente parar”, relembra. Ela amamentou o filho Rafael até os dois anos e a filha Viviana até os dois anos e meio, conciliando a rotina de mãe com reuniões, revisões de artigos e avaliações: “Não é só o cansaço físico, é o mental, o emocional. A sobrecarga se acumula em todos os níveis”.
Sem familiares por perto em São Carlos, a professora encontrou na creche da USP um dos pilares que tornaram possível seguir trabalhando. “É uma creche de excelência, com período integral, alimentação de qualidade e todos os cuidados que a gente pode imaginar. Foi essencial para mim”, comenta.
Embora os filhos já estejam maiores e não dependam dela em tempo integral, a rotina de Cibele continua exigente. Ela precisa conciliar diferentes frentes de organização diária: a agenda profissional, os compromissos escolares e médicos das crianças e, por fim, a sua própria, que frequentemente fica em segundo plano: “Quando dou aula à noite, é especialmente difícil sair de casa e deixá-los. Mas a gente se adapta. E eles também”.

“A maternidade não deve impedir a nossa presença e liderança na ciência”, afirma a professora Cibele. | Imagem: Arquivo Pessoal
Ciência e filhos no mesmo quintal – Se por um lado a maternidade impôs desafios para a carreira da professora Cibele, por outro ela também inspira. Em 2018, por exemplo, ela criou o projeto Ensino de Estatística para Crianças, realizado na creche da USP São Carlos, onde executou alguns jogos. “Tem uma coisa que as crianças conseguem fazer antes mesmo de se alfabetizarem, que é medir o comprimento do palmo da mão. E, a partir disso, a gente consegue fazer uma coleta de dados com crianças”, explica.
No ano passado, Cibele levou uma aula de probabilidade para a turma do terceiro ano do ensino fundamental da turma do filho. “Eu ensinei noções de incerteza, de probabilidades. Foi mágico ver o encantamento das crianças com conceitos tão simples e, ao mesmo tempo, tão poderosos”.
Resistência cotidiana – Com uma produção acadêmica que inclui mais de 514 citações, ela atualmente integra a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP, buscando atuar para mudar as desigualdades estruturais dentro da academia. “Recentemente a Pró-Reitoria aprovou um auxílio adicional para alunas beneficiárias do Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE) que têm filhos. Também se tornou comum estender prazos de avaliação para discentes que entram em licença-maternidade”, pondera.
Recentemente, o ICMC passou a contar com fraldários nos banheiros, tanto femininos quanto masculinos. Apesar de todas as dificuldades, Cibele segue firme em seu trabalho, atuando também como divulgadora científica. Ela tem um canal no YouTube onde ensina estatística e ciência de dados. “Meus filhos já têm orgulho. Quando alguém me reconhece na rua e diz que assiste às minhas aulas, meu filho fica todo contente. E isso me emociona”.
Ela se orgulha da própria trajetória, mas reforça que esse caminho não deveria ser solitário nem tão penoso para outras mulheres: “A maternidade não pode ser um fardo dentro da ciência. Somos diferentes dos homens, temos desafios distintos. Por isso mesmo, precisamos de políticas específicas e de acolhimento real. A mulher pode estar onde ela quiser, inclusive sendo mãe e cientista”.

O projeto Parent in Science surgiu em 2016 de uma iniciativa da bióloga Fernanda Staniscuaski | Imagem: Arquivo Pessoal
Dados que não mentem, realidades que não mudam – O relato da professora Cibele Russo é respaldado por um crescente corpo de pesquisas que escancaram o impacto desproporcional da maternidade na carreira científica das mulheres. Um deles, publicado na Nature Humanities and Social Sciences Communications, em 2023, revelou que “o viés de gênero é predominante na ciência, especialmente nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, onde a presença das mulheres diminui acentuadamente durante a carreira acadêmica”.
Conhecido como “efeito tesoura”, esse fenômeno mostra que a maioria das mulheres deixa a carreira acadêmica, sendo um dos motivos os relacionados com a maternidade. “Os dados mostram que o impacto da maternidade na ciência é concreto, mensurável e persistente. Não é uma percepção subjetiva. É um desequilíbrio estrutural que precisa ser reconhecido e compensado pelas instituições e agências de fomento”, afirma a professora Fernanda Staniscuaski, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Parent in Science.
Desde a criação do movimento, um dos avanços mais importantes, segundo Fernanda, foi justamente romper o silêncio e normalizar o debate sobre os desafios enfrentados por mães que atuam na ciência. Outro passo significativo foi alcançado em 2021, quando passou a ser possível sinalizar oficialmente os períodos de maternidade no currículo Lattes. Em 2023, foi a vez da Plataforma Sucupira, um sistema nacional para avaliação dos cursos de pós-graduação, aderir a essa possibilidade.
Fernanda finaliza: “Sempre foi possível ser mãe e cientista, mas isso costumava ter um custo muito alto. O que queremos é que isso se torne possível de maneira mais leve e mais justa. Estamos mostrando, especialmente para as meninas e jovens pesquisadoras, que sim, é possível. Ainda vai exigir esforço delas, mas acredito que estamos avançando rumo a um sistema mais justo e acolhedor”.
Texto: Gabriele Maciel, da Fontes Comunicação Científica
Mais informações
Conheça mais sobre a trajetória acadêmica da professora Cibele: lattes.cnpq.br/1011098065426388
Acesse o canal no Youtube da professora Cibele com vídeo-aulas sobre Estatística e Ciência de Dados : Cibele Russo – YouTube
Conheça o auxílio permanência complementar oferecido pela USP para responsáveis legais por crianças de até 6 anos de idade: PAPFE – PRIP – Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento – USP
Conheça mais sobre o movimento Parent in Science: www.parentinscience.com/