Mais que ser contra ou a favor desmontar o Elevado Presidente João Goulart, grupos debatem a própria concepção de parque a ser usada na transformação

Longe de polarizações, a discussão abrange diferentes concepções de parque dos cidadãos – Foto: Jean Silva*
“A primeira lembrança que tenho do Minhocão me remete à infância”, conta Gabriela Romano López em sua dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP em São Carlos. Das vezes que visitava o avô no trabalho, na Rua Jaguaribe, conseguia ver os carros passando no então nomeado Elevado Presidente Costa e Silva da janela da sala comercial. Construído no início da década de 1970 durante a ditadura militar pelo prefeito Paulo Maluf, o Elevado Presidente João Goulart foi, à época, a maior obra em concreto armado da América Latina.
Em seu trabalho, em parte narrado em primeira pessoa, a pesquisadora investigou o acirramento do debate sobre o futuro do elevado conhecido como Minhocão – após a promulgação da Lei do Plano Diretor Estratégico (PDE) do município de São Paulo, em 2014. Controverso desde o início, diversas iniciativas tentaram amenizar o impacto de sua presença, como propostas de mitigação de impactos, demolição ou reúso do espaço.

Gabriela López – Foto: Arquivo pessoal
O PDE (Lei n° 16.050) orienta o crescimento e o desenvolvimento urbano de todo o município da cidade até 2029. Entre as ações, está a criação de mais áreas verdes e parques. Na mesma época, Gabriela, graduada em Arquitetura pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), voltou a trabalhar na “terra da garoa”, em um escritório a cinco quadras do Minhocão, após uma estadia de dez anos em São Carlos.
Devido à reanimação do debate após a promulgação da lei em 2014, a pesquisadora afirma que o elevado “passou a ser peça-chave para se imaginar futuros urbanos”. Desses entrelaçamentos pessoais e profissionais, Gabriela construiu sua pesquisa baseada na abordagem da Cartografia das Controvérsias, de Bruno Latour, antropólogo, sociólogo e filósofo francês.
Derivada da Teoria Ator-Rede, essa abordagem propõe expor as disputas ou controvérsias em torno de um problema público mostrando quem são os atores humanos e não humanos envolvidos; como se conectam (relações), e com quais argumentos, dados, interesses e valores.
Os resultados obtidos mostram que a maior preocupação em disputa no debate estava em torno do que é — e o que não é — um parque, e não apenas no desmonte. Assim, Gabriela identificou três concepções: parque-de-chão, parque-de-projeto e parque-de-encontros. O primeiro surge como consequência de que ele não pode ser criado por meio da vontade coletiva, pois deve ser feito de chão, árvores, sombra; em seguida, a dependência de um projeto arquitetônico, com ou sem o desmonte da estrutura; e o último feito das interações entre o espaço, pessoas e coisas do atual uso como parque que já existe e independente de processos institucionais, legais e arquitetônicos. Ou seja, “o debate não é uma polarização”, confirma a pesquisadora.
“Penso o papel do arquiteto não como aquele que vai trazer a solução, mas que irá mediar esses mundos urbanos” – Gabriela Romano López
Para esse mapeamento, a pesquisadora realizou uma etnografia da discussão através de documentos oficiais, atas das audiências públicas dos projetos de lei de 2014 até 2019, posts em redes sociais, matérias de jornais, publicações científicas e nove entrevistas com porta-vozes do debate. Com isso, foram produzidos dois mapas interativos, disponíveis na plataforma on-line Kumu. Com esse material produzido, foi possível identificar os “nós” do debate — pontos de encontro entre atores — e acompanhar os eventos, atores, alianças e fricções que o moldaram ao longo do tempo.
Inovar nos Estudos Urbanos
O primeiro mapa produzido oferece uma visão cronológica da controvérsia em torno do futuro do Minhocão, entre 2013 e 2021. Ele permite acompanhar os eventos, atores, alianças e fricções que moldaram o debate ao longo do tempo. Já o segundo convida a uma leitura mais detalhada das seis audiências públicas realizadas no período, trazendo para o primeiro plano a pluralidade de interesses e preocupações expressos pelos participantes. Os mais frequentes foram: “participação e democracia”, “uso do espaço público” e “o que é um parque”, sendo esse último o maior “nó” da rede.

Os mapas interativos propõem aos interessados percorrerem por toda a rede de atores e suas discussões – Imagem: Cedida pela pesquisadora
A abordagem da Cartografia das Controvérsias da Teoria Ator-Rede (TAR) permitiu acompanhar como o Minhocão habitou e habita os mundos urbanos e refletir sobre a produção do espaço urbano contemporâneo. Em vez de separar “técnica” e “social”, a TAR permite observar como pessoas, instituições, leis, objetos e infraestruturas se conectam e coproduzem a cidade. Essa lente, ajustada aos Estudos Urbanos, entende o urbano como conjunto de arranjos diversos e em transformação, ajudando a escapar de oposições rígidas e a reconhecer matizes nas disputas urbanas. A pesquisa traduz essa lente em mapas interativos que permitem seguir conexões, comparar argumentos e checar fontes.
Como instrumentos de cidadania, os mapas convidam qualquer pessoa a navegar pelo debate e participar de forma mais informada, ampliando a deliberação pública sobre o “fazer cidade”. Mais do que produzir sínteses, os mapeamentos são dispositivos abertos, feitos para serem lidos, operados e confrontados pelo próprio campo, estimulando participação democrática qualificada. Ela desloca certezas apressadas e abre um campo de incertezas e preocupações compartilhadas. Desse modo, os múltiplos entendimentos podem aparecer e serem negociados, o que abre espaço para a ação cidadã sobre as decisões públicas de projetos urbanos de alto impacto.
Nesse sentido, ao ampliar o número de atores envolvidos, aumenta-se, consequentemente, o número de contingências e pontos de potencial intervenção nos diversos conjuntos urbanos. Assim, as oportunidades para pensar a ação coletiva nas cidades e as transformações nas paisagens urbanas também aumentam. “Como o elevado está sendo construído a partir das práticas das pessoas? Não só delas, mas também os elementos não-humanos”, questiona a pesquisadora.
Retorno do debate

As diferentes concepções de parques encontradas explicitam as posições híbridas dos cidadãos envolvidos no debate – Imagem: Reprodução do artigo
O desejo da arquiteta ao realizar essa pesquisa é claro: retomar a discussão. Parada desde a pandemia, ela indica que em 2019 havia algumas possibilidades de caminho. “Acho válido mostrar o que foi pensado, mesmo que não tenha sido posto em prática – era uma potencialidade, uma forma de tentar lidar com o problema. Então achei importante destacar esse esforço que não se concretizou no mapeamento. A pandemia acabou esfriando a discussão. O que eu gostaria é que essa discussão fosse reavivada.” Também destaca a importância dos universitários atuarem nessa mediação. Projetos de extensão dedicados ao problema são caminhos para efetiva mediação, conforme a pesquisadora.
Ela elucida porque opta por não utilizar a Teoria Crítica Urbana (TCU) nessa avaliação e dedica um capítulo inteiro de sua dissertação para contextualizar essa escolha. Devido à extensão de literatura existente quanto ao debate do elevado pela TCU, e exatamente por não querer limitar o debate às perspectivas existentes, decidiu avaliar a discussão com uma teoria que complexifica os atores envolvidos. O diferencial da perspectiva empirista foi outro elemento relevante na escolha metodológica.
Essa inovação é um dos pontos altos do trabalho, de acordo com David Sperling, professor livre-docente do IAU e orientador da pesquisa. “Os achados vêm dessa abordagem, da cartografia como espacialização da informação. Gabriela trabalhou com um volume significativo de informações que vieram de entrevistas, audiências públicas, do debate público disponível em jornais e no contato direto com pessoas interessadas no debate sobre o Minhocão”, explica Sperling, que também é vice-coordenador do Polo São Carlos do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. “Diante desse volume de informações e de atores, e de suas questões de interesse, o cenário é mais amplo e a polarização simplifica.”
“Dá para identificar claramente que, tanto as posições [quanto o debate] não são binárias, elas são híbridas”, diz David Sperling.

David Sperling – Foto: Arquivo pessoal
Para além dessas posições, há questões socioeconômicas sérias e um histórico de decisões autoritárias no Brasil, em que a própria via se inclui, conforme o professor. “Por outro lado, existe uma micropolítica e uma inventividade imensa que inspiram visões de transformação. Esse olhar busca entender as complexidades da realidade urbana”, continua. Ele destaca que apesar de ser definido como um debate polarizado, essa dicotomização não se alinha necessariamente à direita e esquerda, pois há progressistas e conservadores em ambos os lados. “Há nuances e matizes. O que a pesquisa faz é abrir as questões de interesse e colocar os atores nessa trama”, aponta Sperling.
A dissertação Mundos urbanos em construção: entre controvérsias e cosmopolíticas do Parque Minhocão pode ser lida aqui. Os mapas interativos estão disponíveis clicando aqui.
Para mais informações: gromanolopez@gmail.com, com Gabriela López
Texto: Jean Silva – Estagiário sob orientação de Fabiana Mariz
Arte: Gustavo Radaelli – Estagiário sob orientação de Moisés Dorado
Por Jornal da USP