Equipe composta por pesquisadores do IFSC/USP conquistou no início deste mês o 2º lugar ex aequo com mais duas equipes internacionais no Vesuvius Challenge 2023 Grand Prize, um desafio cuja missão é utilizar a Inteligência Artificial (IA) na leitura de pergaminhos romanos carbonizados em uma biblioteca da cidade “Herculano”, após a erupção do Vesúvio em 79 d.C.
Compuseram a equipe o Prof. Odemir Martinez Bruno do IFSC/USP, o Mestrando em Física Computacional no IFSC/USP, Elian Rafael Dal Prá, o Pós-Doutorando no IFSC/USP, Leonardo Scabini, o administrador de sistemas, Sean Johnson, o graduando de Ciências de Computação no ICMC/USP, Raí Fernando Dal Prá, o graduando de Física no IFSC/USP, João Vitor Brentigani Torezan, o mestrando em Engenharia Química no GIMSCOP/UFRGS, Daniel Baldin Franceschini, o graduando de Enfermagem na UNOPAR, Bruno Pereira Kellm e o empreendedor Marcelo Soccol Gris. Saliente-se que o Prof. Odemir Bruno, o Mestrando Elian Rafael Dal Prá e o Pós-Doutorando Leonardo Scabini, pertencem ao Grupo de Computação Científica do IFSC/USP.
O “Desafio do Vesúvio”, mais do que uma competição de aprendizado de máquina e visão computacional que no final do ano de 2023 explorou o enigma dos “Papiros de Herculano” e concedeu mais de US$ 1 mi em prêmios, é considerada, acima de tudo, uma grande colaboração internacional onde a ciência saiu grandemente beneficiada. A etapa que se encerrou no final de 2023 desafiava pesquisadores a decifrar, pela primeira vez, algumas passagens completas de um dos pergaminhos. Os cientistas deveriam desenvolver algoritmos que pudessem detectar tinta em imagens de tomografia computadorizada obtidas dos papiros carbonizados, que consequentemente revelariam o texto neles contido. A equipe vencedora deste desafio, que faturou US$ 700 mil, foi constituída pelos jovens pesquisadores Youssef Nader (Alemanha), Luke Farritor (Estados Unidos) e Julian Schillinger (Suíça). Às outras três equipes, incluindo a equipe de brasileiros, foi concedido o posto de segundos colocados e dividiram um prêmio de US$ 150 mil.
Contextualizando
“Herculano” foi uma cidade localizada na comuna moderna de Ercolano, Campânia, Itália, tendo sido enterrada sob as cinzas provocadas pela erupção do vulcão do Monte Vesúvio. Como a cidade vizinha de Pompeia, “Herculano” é famosa por ser uma das poucas cidades antigas que ficou preservada – mais ou menos intacta – após a ação do vulcão, pois as cinzas que cobriram a cidade também a protegeram contra saques e intempéries. Embora hoje seja menos conhecida do que Pompeia, ela foi a primeira – e por muito tempo a única – cidade enterrada pelo vulcão Vesúvio a ser encontrada (em 1709), enquanto Pompeia só foi revelada a partir de 1748 e identificada em 1763.
Ao contrário do que aconteceu em Pompeia, o material que cobriu “Herculano” – principalmente piroclástico – carbonizou e ao mesmo tempo preservou as madeiras e diversos objetos, como telhados, camas e portas, além de outros materiais de base orgânica, como alimentos e papiros.
Para entender a história
No ano de 79, o Monte Vesúvio entrou em erupção e, na cidade de “Herculano”, vinte metros de lama quente e cinzas enterraram uma enorme villa que pertencia ao sogro daquele que muitos consideram ter sido o primeiro Imperador de Roma – Júlio César. No interior, havia uma vasta biblioteca com rolos de papiro. Os pergaminhos foram carbonizados pelo calor dos detritos vulcânicos, mas, curiosamente, essa ação também provocou a sua preservação. Durante séculos, enquanto praticamente todos os textos antigos expostos ao ar se deterioravam e desapareciam, a biblioteca da “Vila dos Papiros” (assim se chamava) subsistia no subsolo, intacta.
No ano de 1750, um fazendeiro descobriu a vila enterrada e um de seus funcionários, ao cavar um poço, encontrou um pavimento de mármore. As escavações revelaram belas estátuas e afrescos, bem como centenas de pergaminhos carbonizados e acinzentados, apresentando-se extremamente frágeis. Mas, a tentação de abri-los era grande, já que, se lidos, isso mais do que duplicaria o corpus de literatura que existe desde a antiguidade. Infelizmente, as primeiras tentativas de abrir os pergaminhos provocaram a destruição de grande parte deles. Entretanto, alguns foram cuidadosamente desenrolados por um monge ao longo de várias décadas, tendo-se descoberto que continham textos filosóficos escritos em grego. Mais de seiscentos pergaminhos permanecem ainda hoje fechados e ilegíveis.
Em 2015, o pesquisador, Dr. Brent Seales, da Universidade de Kentucky (EUA), junto com sua equipe, foi pioneiro no designado “desembrulhamento virtual”, ao conseguir ler o pergaminho de En-Gedi (um oásis localizado a Oeste do Mar Morto, perto de Massada, e que é mencionado diversas vezes nos escritos bíblicos) sem abri-lo, utilizando para isso a tomografia de raios X e visão computacional. Descoberto na região do Mar Morto, em Israel, o pergaminho contém um texto do livro de Levítico – o terceiro livro da Bíblia hebraica.
Desde então, a técnica de “desembrulhamento virtual” emergiu como um campo em crescimento com múltiplos sucessos. O trabalho de Brent Seales e de sua equipe mostrou que a indescritível tinta de carbono dos pergaminhos de “Herculano” também pode ser detectada através de tomografia de raios X, estabelecendo as bases para o citado “Desafio do Vesúvio”.
IFSC/USP entre os melhores
O “Desafio do Vesúvio” – ou “Vesuvius Challenge” – foi lançado em março de 2023 para reunir os pesquisadores de todo o mundo para lerem os pergaminhos de “Herculano”. Junto com outros prêmios, foi estipulado um Grande Prêmio destinado à primeira equipe que recuperasse 4 passagens de 140 caracteres de um pergaminho, dando-se início à descoberta do quebra-cabeça dos papiros de “Herculano”, após 275 anos.
Mas, a busca para descobrir os segredos dos pergaminhos está apenas começando. A edição de 2023 do “Desafio do Vesúvio” foi marcante, já que abriu as portas para algo sem precedentes: o acesso a pergaminhos que não são lidos há cerca de dois milênios, com a participação de equipes de pesquisadores. Nesta edição de 2023 do “Vesuvius Challenge – Grand Prize”, a grande vitória do IFSC/USP, que participou da “competição”, não foi apenas alcançar o 2º Prêmio, em igual posição com outras duas equipes internacionais, mas sim integrar um grupo extraordinário de pesquisadores que empreenderam um enorme trabalho para atingirem essa extraordinária meta.
A metodologia utilizada pela equipe do IFSC/USP para fazer a leitura dos pergaminhos consistiu em escanear um papiro carbonizado, tendo sido feita uma tomografia utilizando um acelerador de partículas e, com essa geometria do papiro, ele precisou ser “desenrolado”. A partir dessa ação, a equipe precisou obter algum sinal da tinta desse papiro, ou seja, algo que começasse a formar letras. Conforme explica Elian Rafael Dal Prá, cujo sua participação teve origem em seu trabalho de Iniciação Científica, a parte de pegar, escanear e desenrolar o papiro foi realizada pelo próprio pessoal do “Desafio do Vesúvio” e, a partir daí, esse resultado foi enviado para todos os que estavam participando dos estudos desses dados, sendo que a proposta foi exatamente tentar achar o sinal de tinta.
Contudo, houve uma pessoa – Casey Handmer -, que descobriu que havia um sinal de rachadura nesses dados – designado “crackle”- que sinalizava a tinta da escrita. “Dessa forma, foi possível descobrir muitas letras nesses papiros que já estavam escaneados e planificados. ”Basicamente, o que fizemos foi aplicar um método de Inteligência Artificial (IA), um método de aprendizado de máquina que buscasse esses padrões de “crackles”, pontua Elian. Para essa ação, ele pediu ajuda a alguns amigos, que compuseram a equipe, para tentar encontrar esses “crackles”, algo que se concretizou através da criação de um banco de dados para fazer com que o algoritmo de aprendizagem de máquina aprendesse isso. “A partir daí, o que fizemos foi jogar na IA repetidamente os dados que criamos, que aprendemos, até formarmos os textos”, sublinha Elian.
Quando as dificuldades de sua iniciação científica aumentaram e o prazo para o desafio ficava mais curto, por sugestão de seu orientador, Elian entrou em contato com Leonardo Scabini, Pós-Doutorando do grupo de computação interdisciplinar do IFSC-USP, para fazer parte do time. “Leonardo contribuiu positivamente desde a nossa primeira conversa. O impacto de cada bate-papo era notável no treinamento dos modelos. Sua ajuda foi essencial para que conseguíssemos fazer esse projeto a tempo”, afirma Elian. Na sequência, Elian também contactou com um administrador de sistemas – o norte americano Sean Johnson – que igualmente teve um importante papel na resolução desse problema. “Sean possuía uma grande intimidade com os dados. Ele nos ajudou muito e teve papel fundamental para conseguirmos um resultado mais legível no final da competição”, relata o mestrando do grupo de computação interdisciplinar. “Foi um processo muito interativo”, destaca Elian.
Em relação à “competição” propriamente dita e no que diz respeito ao primeiro colocado, Elian afirma que a disponibilidade de recursos e o tempo para a concretização do projeto foram um desafio. O time que iria vencer o desafio já tinha vencido etapas anteriores, como detectar as primeiras letras no pergaminho, em agosto, levando-os a alcançar resultados muito bons na etapa final de 2023. “Eles já tinham resultados bons. Em novembro nós não tínhamos quaisquer resultados próprios e foi basicamente o resultado deles que fez com que iniciássemos todo o nosso processo; foi uma corrida contra o tempo”, destaca Elian.
Próximos passos – Abrindo novas fronteiras
Para Leonardo Scabini, a partir do momento em que foi divulgado o prêmio dessa etapa da competição, todo o código, modelo e os resultados obtidos pelos participantes ficaram públicos, sendo que a próxima etapa será bem mais complexa. “O que eles conseguiram fazer foi ler em torno de 5% apenas de um pergaminho. Agora, a próxima etapa é a restante leitura e já tem gente trabalhando nisso, sendo que estamos nos organizando para o próximo passo. Contudo, já vi gente usando os resultados não só da equipe que venceu o “Desafio do Vesúvio”, como os nossos também. Então, apesar de ter existido uma classificação, com um primeiro lugar e três equipes colocadas em segundo lugar, as contribuições de todos se somaram e quem ganha é a ciência e a humanidade. Para a próxima etapa estamos nos organizando para continuar ativamente pensando em como melhorar o nosso time e como melhorar a nossa IA”, esclarece Leonardo.
Em relação ao desafio propriamente dito, o Prof. Odemir Bruno destaca que a contribuição científica é muito mais valiosa do que o prêmio financeiro da competição. O desafio de ser revelado um pergaminho carbonizado há 2000 anos e praticamente considerado no passado como impossível de ser lido, demonstra o grande potencial da inteligência artificial. “Muito se fala sobre a Inteligência Artificial na mídia, na maioria das vezes posicionando-a como uma ameaça. Entretanto, ao revelar um conteúdo histórico de valor inestimado, a área da inteligência artificial, se revela com uma nova revolução na Ciência, com potencial para trazer grandes benefícios para a humanidade. Não devemos temer o conhecimento, devemos compreende-lo e usá-lo para nossa continua evolução.
Ainda em relação ao desafio, o cientista destaca que as 4 equipes vencedoras conseguiram resolver o problema seguindo caminhos diferentes. “Na Ciência, as contribuições se somam, agora que os códigos das 4 equipes foram publicados, com eles podem ser desenvolvidos métodos ainda mais eficientes. Os novos métodos, baseados nos 4 vencedores podem ser usados tanto na continuidade do problema dos pergaminhos como em outras áreas.
E, se os cientistas conseguiram ler um pergaminho que se carbonizou há dois mil anos, existe a firme convicção de que eles poderão olhar para a lâmina de um microscópio e detectar uma célula tumoral, ou olhar uma nanoestrutura e descobrir um material novo. “Certamente que sim. Futuramente, seremos capazes de olhar para a estrutura de uma máquina, de um avião, e detectar falhas com uma razoável antecedência, prevenindo dessa forma possíveis catástrofes. A IA pode realizar coisas que hoje parecem impossíveis – por exemplo, descobrir a cura para uma doença ou detectar o surgimento de um tumor em tempo hábil. Isso demonstra que estamos vivendo uma revolução na ciência, tudo por conta da IA e com certeza a humanidade vai ser beneficiada. O que é importante é que na ciência tudo se soma”, conclui o pesquisador.
O conteúdo desvendado no pergaminho
Os fragmentos revelados no pergaminho – provavelmente escritos pelo filósofo Filodemo de Gádara -, discutem conceitos da filosofia epicurista sobre a busca pelos prazeres da vida, enfatizando a importância da música, da alimentação e de como desfrutar dos prazeres cotidianos de forma equilibrada. Ele explora a filosofia de que o prazer é o bem supremo, mas destaca a necessidade de entender corretamente o que constitui um prazer verdadeiro, sugerindo uma reflexão sobre a moderação e o valor dos prazeres simples. Finalmente, o pergaminho conclui, em tradução direta: “…pois [não] nos abstemos de questionar algumas coisas, mas de compreender/lembrar outras. E que seja evidente para nós dizer coisas verdadeiras, como muitas vezes poderiam ter parecido evidentes!”
A participação do IFSC/USP neste desafio – que tem sua continuação mais para a frente – mostra que a ciência brasileira é muito competitiva internacionalmente, mesmo com recursos e verbas bem inferiores aos que os países desenvolvidos possuem. Será uma questão de criatividade que supera tudo e todos? Talvez!!! O certo é que a ciência brasileira está forte, consolidada e competitiva.
Para conferir o artigo submetido pela equipe do IFSC/USP ao “Vesuvius Challenge”, clique AQUI.
Por Rui Sintra & Adão Geraldo – Assessoria de Comunicação – IFSC/USP