A nova edição da Revista USP – Foto: Reprodução
“Pretende-se, pois, acolher nesta coleção trabalhos que traduzam o resultado do esforço de revisão das técnicas de análise e interpretação da realidade brasileira que vem caracterizando o desenvolvimento recente das ciências humanas no Brasil. O antigo espírito de improvisação e verbalismo, que tanto marcou a fase do chamado bacharelismo brasileiro, começa a ser revisto e substituído, pouco a pouco, pela radicação no Brasil do ponto de vista científico de análise dos problemas do homem, da sociedade e da cultura.”
Ao lado desses princípios, em seus primeiros anos, a Coleção Corpo e Alma buscou se alinhar às discussões sobre a formação e o desenvolvimento do Brasil com a edição de trabalhos pioneiros a respeito das relações raciais, conta Fabiana. Tratava-se de uma questão crítica para entender o cenário de desigualdades nacionais e que colocava as teses acadêmicas da USP em diálogo com as discussões políticas centrais das organizações sociais e partidos progressistas.
“A ação da Difel constituiu”, escreve a pesquisadora, “um caminho pelo qual o mercado editorial se estabelecia como um aliado necessário para que a produção da Universidade se tornasse parte de um universo legítimo e fundamental para se conhecer o Brasil.”
Quem também enxergava nos livros o veículo material de uma missão era Jorge Zahar, fundador da Zahar Editores. Conforme o próprio slogan dos títulos da casa anunciavam, o princípio era mobilizar a cultura para o progresso social. A partir da formação de um catálogo de obras voltado para as ciências sociais e as humanidades, Zahar se empenhou na construção de um projeto de País.
Essa é a análise de Leonardo Nóbrega, professor do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE). “A cultura a serviço do progresso social”, frase estampada nas capas dos livros da Zahar a partir de 1960, era a síntese da experiência de sua geração. Tratava-se de uma classe média intelectualizada, alimentada pelo pensamento de esquerda, pautada pelo ideal progressista e confiante de que a cultura poderia ser o motor da transformação social.
Nóbrega investiga como Jorge Zahar colocou isso em prática no catálogo de sua editora a partir da análise de dois momentos distintos. O primeiro, situado do início da editora, em 1957, até o começo dos anos 1970, é marcado pela tradução de obras vinculadas à esquerda estadunidense e autores da Escola de Frankfurt residentes nos Estados Unidos. Erich Fromm, Herbert Marcuse, Charles Wright Mills e vários colaboradores da revista socialista Monthly Review estiveram entre os títulos publicados. Eram escritos que dialogavam com o surgimento da Nova Esquerda e questionavam o imperialismo estadunidense e os desdobramentos do capitalismo.
O segundo momento analisado pelo pesquisador compreende o final dos anos 1960 e a década de 1970, quando a Zahar expande o número de autores brasileiros em seu catálogo. Ganham espaço as reflexões críticas a respeito das teorias da modernização, sobretudo as abordagens atreladas às ideias de subdesenvolvimento e dependência. Intelectuais ligados à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e nomes como Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso tiveram títulos publicados pela editora.
“A partir da análise do catálogo da Zahar Editores, é possível perceber a existência de um projeto político que se constrói em diálogo com os diversos movimentos intelectuais e sociais atuantes ao longo do período”, escreve Nóbrega. “A Zahar Editores, seja por meio do estabelecimento de uma política editorial de tradução de autores estrangeiros, com foco inicial no pensamento crítico estadunidense, seja a partir dos vínculos com autores nacionais e dos demais países latino-americanos, que serviram de espaço de materialização e disseminação de um debate tão fundamental quanto o do desenvolvimento e dependência, participou ativamente de um esforço coletivo de imaginação sobre o Brasil.”
Mas não foi apenas o campo progressista que mobilizou o mercado editorial na batalha das ideias, como mostra Camila Djurovic, mestre pela FFLCH. A autora reconstitui a história da série Cadernos Nacionalistas, editada entre 1964 e 1965 pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês), entidade fundada por empresários e militares de alta patente do Rio de Janeiro e São Paulo. Promovendo ações clandestinas para desestabilizar o governo João Goulart, como financiamento de parlamentares e grupos oposicionistas, infiltração em movimentos populares e disseminação de propaganda anticomunista, o instituto se tornaria, após o golpe militar de 1964, um dos centros ideológicos do novo regime.
Os Cadernos Nacionalistas, conta Camila, foram uma tentativa do Ipês para esclarecer o leitor comum a respeito dos debates do momento, a partir da ótica de seu projeto político. Imitavam estratégias do próprio campo progressista, como a popular Coleção Cadernos do Povo Brasileiro, da Editora Civilização Brasileira. Procuravam ampla circulação, através de linguagem acessível e formato de bolso. Seus volumes traziam propaganda anticomunista e posicionamentos conservadores sobre as reformas de base do governo Goulart: Infiltração Comunista no Brasil, Os Verdadeiros Reacionários, Como Lidar com os Comunistas, Estratégia e Tática Comunista para a América Latina, O Árduo Caminho da Reforma Agrária.
No volume dedicado à questão agrária, escrito pelo agrônomo e professor de Geologia da USP José Setzer, é possível encontrar as linhas gerais do anteprojeto de reforma agrária defendido pelo Ipês, que se materializaria na Lei da Reforma Agrária, de novembro de 1964, conhecida como Estatuto da Terra. Manutenção do latifúndio e uso do capital privado para desenvolver o campo são as estratégias propostas por Setzer.
“Nas palavras do autor, as razões do atraso no campo se deviam à ‘ignorância’, ao ‘desleixo’ e ao ‘nível cultural demasiadamente baixo’ dos trabalhadores rurais brasileiros”, escreve Camila. “Desse modo, dar terras a todos que vivem no campo equivaleria a ‘desorganizar e encarecer a produtividade agrícola, arruinando ainda o solo em um ritmo catastrófico’.”