No Pantanal, pesquisadores encontram maior vírus gigante com cauda já isolado no mundo

Identificado no rio Paraguai, o naiavírus surpreende por seu genoma inédito e cauda flexível; descoberta pode ampliar conhecimentos sobre a evolução celular na Terra

Tomografia eletrônica de partículas de naiavírus, destacando o envelope externo (magenta) e o capsídeo (azul claro). Os experimentos foram repetidos independentemente três vezes, com resultados semelhantes – Imagem: Retirada do artigo

Os vírus gigantes fascinam cientistas desde 2003, quando foram detectados pela primeira vez na natureza. Esse grupo é formado por vírus que infectam amebas — ou seja, são inofensivos aos seres humanos — e apresenta características que desafiam paradigmas da microbiologia: enquanto um vírus da dengue mede aproximadamente 50 nanômetros (nm), um vírus gigante pode ser até 52 vezes maior, chegando a 2.600 nm.

Pesquisadores brasileiros identificaram um novo vírus gigante, apelidado de naiavírus, que não se assemelha a nenhum organismo já observado na virosfera. Isolado no Pantanal, trata-se do primeiro vírus gigante envelopado (que possui uma membrana externa envolvendo o capsídeo) e com uma cauda longa e flexível, além de ser um dos poucos capazes de infectar mais de um tipo de ameba. O genoma do naiavírus, com quase 1 milhão de pares de bases, revela um conjunto único de genes e enzimas envolvidas na tradução proteica.

Otavio Henrique Thiemann - Foto: Lattes

Otavio Henrique Thiemann – Foto: Lattes

Otávio Thiemann, professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, coordena o primeiro grupo de cristalografia de proteínas da América Latina. Nos últimos anos, ele se dedicou, ao lado de Jônatas Abrahão, docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ao estudo de amebas de vida livre e patógenos. Agora, eles assinam o artigo recém-publicado na revista Nature. “[Os vírus gigantes] são fascinantes e têm um aspecto evolutivo muito interessante”, comenta Thiemann.

As amebas evoluíram no mesmo período em que os eucariontes se diferenciaram das arqueobactérias, num processo que ocorreu há mais de 2 bilhões de anos. Embora compartilhem semelhanças estruturais, os eucariontes são caracterizados por um núcleo delimitado por membrana, organelas especializadas – como mitocôndrias e retículo endoplasmático – e estrutura metabólica muito mais complexa.

Esse processo foi crucial para o surgimento da diversidade de formas de vida multicelulares, e representa um marco fundamental na história da Terra.

Os cientistas analisaram 439 amostras de água até encontrarem sinais do naiavírus em uma única amostra coletada no município de Porto Murtinho (MS). A descoberta pode fornecer pistas valiosas sobre a evolução celular. “Amebas representam alguns dos seres eucarióticos mais antigos que surgiram, são verdadeiros fósseis vivos”, afirma Thiemann.

 “Quando observamos um vírus gigante infectando uma ameba, estamos olhando para o passado”

Ao estabelecer uma relação de parasitismo, o vírus gigante utiliza a estrutura da ameba para replicar sua partícula viral, o capsídeo. Análises preliminares da estrutura do naiavírus sugerem que a interação com o hospedeiro seja feita por meio da cauda. “Parece que ela é grudenta, então se liga na superfície da ameba”, explica o professor da USP.

A chave para o sucesso do vírus está em sua habilidade de “enganar” a ameba. A ameba se alimenta de bactérias e devido ao tamanho do vírus, ela o confunde com uma bactéria e pode fagocitá-lo por engano. “A partir desse contato inicial, o vírus constrói uma fábrica viral: ele faz várias cópias de si mesmo e, depois de certo tempo, arrebenta a ameba e libera essas cópias, para infectar novas amebas”, explica Jônatas Abrahão, da UFMG.

Um genoma nunca antes visto

O genoma do naiavírus se destaca por seu vasto repertório de genes inéditos, cuja função no ciclo viral ainda é desconhecida: cerca de 20% codificam proteínas que nunca haviam sido descritas. Após diferentes investigações — dentre microscopia eletrônica, ensaios biológicos e sequenciamento genômico —, os pesquisadores concluíram que o vírus gigante representa uma espécie e um gênero completamente novos na virosfera brasileira, ampliando o debate na comunidade científica.

Especialista em proteínas, o professor Thiemann utilizou a microscopia crioeletrônica para caracterizar a estrutura da partícula viral em amostras submetidas a congelamento rápido. Essa técnica captura imagens da amostra biológica com um microscópio eletrônico e cria uma reconstrução tridimensional com alta resolução. “Isso nos permite olhar dentro do vírus e tentar chegar a uma estrutura atômica – entender quais proteínas fazem parte do capsídeo e quais proteínas fazem parte das ligações internas com o material genético”, afirma.

“Do ponto de vista da virologia, eu pretendo avançar no entendimento da relação desse vírus com as amebas. Porque, diferentemente de outros vírus gigantes, ele é capaz de infectar mais de um tipo de ameba”, continua. Antes do naiavírus, apenas o tupanvírus, descrito em 2018, havia demonstrado essa capacidade.

a–c Microscopia eletrônica de varredura (MEV) de partículas purificadas do Naiavírus. Em (a), a partícula em seu eixo em forma de gota. Em (c), a partícula em seu eixo triangular. (d) Microscopia eletrônica de transmissão (MET) de partículas do Naiavírus no citoplasma de Acanthamoeba castellanii.

De A a C, partículas purificadas do naiavírus; em D, naiavírus no citoplasma da ameba de vida livre Acanthamoeba castellanii – Imagem: Retirada do artigo

Vírus canônicos (como o da dengue ou HIV) são parasitas obrigatórios, ou seja, necessitam de um hospedeiro para sobreviver pois não conseguem se reproduzir ou se alimentar de forma independente. Por esse motivo, eles carregam pouco material genético e dependem inteiramente do metabolismo da célula hospedeira para garantir a transcrição e tradução de suas enzimas.

O naiavírus, por outro lado, possui uma série de genes associados à tradução proteica. “Vários dos genes, que a gente imaginaria que o vírus usaria da célula hospedeira, ele traz com ele”, diz Thiemann. Foram identificadas 17 proteínas envolvidas na transcrição e processamento de RNA, além de 15 relacionadas à replicação, recombinação e reparo do DNA — o que pode indicar que a transcrição de genes virais ocorra inteiramente no citoplasma da célula infectada.

A cauda de aparência membranosa chamou atenção por sua flexibilidade e variação de tamanho. Os pesquisadores observaram que ela é capaz de se dobrar, esticar e encolher em resposta ao ambiente — uma característica rara entre os vírus conhecidos. “Fora a biodiversidade de fauna e flora, percebemos que Brasil, e o Pantanal especialmente, são um verdadeiro hotspot de diversidade viral”, afirma ao Jornal da USP.

Rio Paraguai, na região do Pantanal brasileiro, no Mato Grosso

A cidade de Porto Murtinho, de 12 mil habitantes, é considerada a última guardiã do rio Paraguai, sendo também portal-sul do Pantanal – Foto: Pedro Spoladore/Wikimédia

Aplicações do vírus gigante

Além de sua relevância científica, os vírus gigantes oferecem potencial para aplicações médicas, já que não infectam o ser humano. “Uma das patentes que registramos na UFMG prevê o uso de vírus gigantes no controle e prevenção de infecções amebianas”, comenta Abrahão.

Também há iniciativas para identificar novas enzimas que possam ser utilizadas na biotecnologia. “Eles abrem portas para olhar para outras proteínas de metabolismo que, por serem diferentes e ancestrais, podem trazer informação de como mudar proteínas que são utilizadas na biotecnologia – tanto na indústria têxtil, como na indústria de alimentos”, explica Thiemann.

Segundo os pesquisadores, os estudos de isolamento viral permanecem cruciais para a crescente exploração da virosfera. Desde 2011, o grupo de pesquisa de Abrahão se dedica à procura de vírus gigantes e, até os dias de hoje, já foram identificados cerca de 300 no Brasil.

A descoberta do naiavírus reforça as adaptações estruturais únicas dos vírus gigantes. Com o conhecimento obtido do genoma, uma possibilidade de continuação da pesquisa é utilizar ferramentas moleculares para procurá-lo em outros ambientes e investigar possíveis associações ecológicas. “A gente vai construindo uma grande imagem sobre a diversidade e evolução a cada vírus que a gente descobre”, conclui Abrahão.

O artigo Naiavirus: an enveloped giant virus with a pleomorphic, flexible tail está disponível on-line e pode ser lido aqui.

Mais informações: thiemann@ifsc.usp.br, com Otávio Thiemann, e jonatas.abrahao@gmail.com, com Jônatas Abrahão.

Texto: Gabriela Nangino – Estagiária sob orientação de Tabita Said
Arte: Gustavo Radaelli – Estagiário sob orientação de Moisés Dorado

Por Jornal da USP

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