Os surdos têm uma maneira única de mergulhar no universo da matemática, por meio do corpo e do olhar
Nas mãos de Adriana, vemos a palavra “matemática”
Imagine que você precisa ensinar matemática para uma criança ouvinte. Você pode falar, por exemplo, que “duas vezes dois é igual a quatro”, e ainda usar os dedos para mostrar essa quantidade, e ela vai aprender. Alguns anos depois, você precisa ensinar que o sinal de X naquela conta é diferente do X que representa um número desconhecido. Não parece impossível, certo? Afinal, isso é ensinado a todo o tempo nas escolas.
Entretanto, algo que pode passar despercebido no processo de aprendizagem é a língua. Ouvir e falar é natural, e é por meio dessa comunicação que aprendemos, entre outras coisas, os conceitos matemáticos. Mas se os surdos não se comunicam da mesma maneira, como ensiná-los o mesmo conteúdo? A resposta é simples, afinal existe a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Na prática, outros problemas afetam o aprendizado de crianças surdas, principalmente na difusão dessa língua. De acordo com a professora Adriana Bellotti, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, é o acesso a essa língua que vai fazer com que o surdo conheça o mundo, a matemática ou qualquer outra coisa. “O principal desafio para se ensinar qualquer disciplina para o surdo é a língua. Somos uma sociedade majoritariamente ouvinte, e o surdo, inserido nela, tem uma diferença linguística”, afirma.
Essa diferença linguística se torna um problema quando crianças surdas não têm acesso ao aprendizado da Libras desde pequenas, causando um atraso no seu desenvolvimento. “A língua de sinais tem que ser a primeira língua para o aluno surdo, pois é por meio dela que ele forma seus conceitos no ensino de matemática. Para ele compreender o conceito, precisa ter uma língua, que o faz compreender tudo, para que a conhecimento dele também evolua. Linguagem e cognição andam sempre juntos”, explica Adriana.
Adriana ministrando o curso de ensino de matemática para surdos
As dificuldades da língua – E o que impede essas crianças de não terem a exposição ideal à língua de sinais? Um dos problemas, segundo Adriana, é a tentativa de levá-los a usar a linguagem falada, ou oralidade: “A grande maioria dos surdos são filhos de pais ouvintes. Por isso, a tendência desses pais é buscar técnicas reabilitadoras da audição e, consequentemente, da oralização. Nesse processo, que pode durar aproximadamente sete anos, a criança pode não estabelecer linguagem alguma, oral nem visual”. Com isso, é estabelecido o atraso no aprendizado por conta da linguagem.
O outro problema, de acordo com Adriana, está no formato atual da escola inclusiva. Hoje, nessas escolas, existe um intérprete em sala de aula que faz a intermediação entre as línguas – entre o professor regente e o aluno surdo. Mas a especialista afirma que esse formato não é efetivamente inclusivo, visto que o professor não possui conhecimento da outra língua. “Esse aluno está inserido num ambiente ouvinte, mas ele tem um contato mínimo com seus colegas porque muitos não sabem se comunicar com ele. Então, ele fica restrito ao intérprete”, ela afirma. E isso resulta em uma situação onde o intérprete acaba se responsabilizando pelo aluno, quando essa função deveria ser do professor. “Essa relação entre professor e aluno deveria ser mais próxima por meio de um conhecimento básico da língua de sinais. O professor não precisa ter domínio completo da língua, mas, pelo menos, um conhecimento mínimo para incluir o aluno no contexto das explicações”, diz.Imagine, então, que juntando todas essas situações, o que poderia ser um problema simples acaba se acumulando à medida que o conteúdo da escola avança. Como o aluno chega na escola sem domínio de uma língua, o intérprete precisa ensinar tanto a comunicação em Libras quanto o sinal de um conceito matemático que a criança nunca viu. “Ou seja, ele tem que, ao mesmo tempo, constituir a língua e compreender os conceitos. Isso vai gerar um atraso na aprendizagem”, explica Adriana.
Trocando números por sinais – Quando a criança já está atrasada no conteúdo, o que fazer? Até mesmo um jogo de “par ou ímpar” pode não fazer sentido para ela. Por isso, Diany Nakamura, estudante de Licenciatura em Matemática do ICMC, pesquisou algumas estratégias para ensinar um aluno do 9º ano do Ensino Fundamental. Com deficiência auditiva, o estudante teve seu ensino prejudicado pela dificuldade de acesso ao conhecimento, já que não havia um intérprete em sala de aula.
Para promover a utilização de materiais adaptados, Diany trocou os números escritos da tabuada pelo sinal equivalente em Libras: “Quem tem deficiência auditiva e sabe Libras tem um reconhecimento visuo-espacial, ou seja, quando você faz um movimento com as mãos, ele imediatamente procura na cabeça o significado daquilo. É um processo que acontece muito mais rapidamente do que se o educador mostrasse o número por escrito”.
Folha de tabuada em Libras, feita por Diany. Cada coluna representa um valor da tabuada, do 3 ao 8
De acordo com Diany, o estudante não fazia a contagem numérica usando as mãos, associando cada dedo a uma unidade. Então, na hora de jogar “par ou ímpar”, por exemplo, ele não compreendia que havia um número sendo mostrado, mas tentava interpretar se aquela disposição da mão significava um sinal em Libras. Por isso, Diany mudou o jeito de jogar “par ou ímpar”: a ideia foi usar o sinal em Libras do número desejado em vez de simplesmente contar os dedos.
Segundo ela, aos poucos, o conceito foi sendo internalizado no aluno, e ele passou a compreender até mesmo a diferença entre equações. “Hoje, ele tem menos dificuldades na escola, e o atraso não é tão evidente”, afirma.
A escola bilíngue – O desafio, hoje, é que a Libras seja uma língua em circulação na sala de aula. Por isso, o formato ideal, de acordo com Adriana, é a escola bilíngue, em que a Libras seja a primeira língua. “Essa escola valoriza a língua de sinais, tudo é ensinado em língua de sinais. Em um segundo momento, entra a língua portuguesa na modalidade escrita”, explica a professora.
Mas também é necessário que a educação em casa seja feita em Libras. “O ideal é o ensino de língua de sinais desde quando for diagnosticada a surdez. Com isso, começa todo um processo de exposição à língua, porque é assim que a criança vai aprender e, quando chegar à escola, já tem uma língua constituída”, diz a professora.
Se houver esse embasamento, até nas escolas inclusivas, com a presença de um intérprete, a intermediação será mais eficiente. “O aluno já vai ter subsídios para compreender esse conteúdo por conta da língua de sinais que já estará constituída”, afirma.
A formação do professor – Se é preciso que o professor tenha, pelo menos, uma noção básica da língua de sinais, como formar esse profissional para que ele seja ainda mais capacitado? Por meio de um decreto publicado no Brasil em 2005, os cursos de licenciatura no país devem oferecer uma disciplina curricular obrigatória de Libras, enquanto os bacharelados devem tê-la como optativa. Mas isso não é suficiente para formar um profissional na língua. “Assim como qualquer língua, nós não conseguimos aprender a Libras em seis meses nem mesmo em um ano. O professor precisa ter noção de quem é o surdo, quais são as especificidades dele, qual é a melhor forma dele aprender, como se deu todo esse processo de educação até chegar onde ele está agora”, explica.
A disciplina de ensino de Libras é ministrada por Adriana nos cursos de licenciatura em Matemática, oferecido pelo ICMC, e licenciatura em Ciências Exatas, oferecido em parceria com o Instituto de Química de São Carlos e Instituto de Física de São Carlos. Pedagoga e doutora em educação, ela dedica sua carreira acadêmica à pesquisa e docência na área de educação de surdos. A disciplina prioriza o vocabulário básico, para que o professor seja capaz de se comunicar com o aluno surdo. Assim, o educador construirá uma relação com esses alunos e, ainda que não saiba a língua por completo, poderá assumir a responsabilidade pelo ensino, a qual deixará de ser do intérprete. A partir daí, eles podem estabelecer uma parceria para pensar em práticas e estratégias que favoreçam o aprendizado dos alunos surdos.
Alunos do curso de ensino de matemática em Libras dizem “A matemática está em tudo”
Além das disciplinas regulares, Adriana ministra um curso de extensão sobre ensino de matemática para surdos, que é aberto à comunidade, onde o conteúdo é aprofundado. Por isso, o requisito básico é que os participantes tenham um curso introdutório de Libras. Entre os matriculados estão alunos que fizeram a disciplina regular e quiseram dar continuidade ao estudo, professores de outras instituições, alunos de mestrado e doutorado, professores da rede municipal e intérpretes de língua de sinais.
No curso, Adriana apresenta um tema e, durante as aulas, os participantes debatem as melhores formas de transmitir o conteúdo e os conceitos aos surdos. “Trabalhamos estratégias metodológicas, reflexões mais aprofundadas sobre o ensino de matemática para surdos, visto que os alunos já têm uma base na língua”, afirma.
Um exemplo do conteúdo abordado é a geometria. Inicialmente, achamos que é mais simples para os alunos surdos aprenderem esse conteúdo, por ser mais visual. Mas, apesar de captar a imagem com mais facilidade, eles ainda precisam compreender o conceito. Explicar o que é um triângulo, qual o seu sinal, o que é ângulo são, de acordo com Adriana, algumas das dificuldades encontradas no caminho: “temos que proporcionar atividades práticas para que ele compreenda o conceito”, explica. Segundo ela, o aspecto visual é extremamente importante, mas deve ser aliado a um suporte, como um material de apoio em Libras para o aluno estudar.
Adriana ainda explica que, em alguns casos, o intérprete pode entrar em acordo com o aluno para criar um sinal, porque a construção do conceito caminha junto com a linguagem. “Como a língua de sinais é uma língua em construção, temos muitas áreas que não têm um vocabulário oficial. Então, o intérprete vai construindo a língua junto com o aluno, na prática. Esse acordo é possível desde que, em outro momento, exista um trabalho para conhecer o sinal oficial”, conta a professora.
Segundo ela, é preciso existir uma maior valorização da língua de sinais, para que os professores compreendam sua necessidade. “Os professores têm o conhecimento específico da matemática, mas não sabem a metodologia, a didática e a prática, com esse olhar voltado para o surdo e sua especificidade”, diz Adriana.
A professora finaliza afirmando que o principal problema nessa área está relacionado à forma como as pessoas enxergam a língua de sinais: “É importante que existam as leis, mas um dos desafios é a língua sair do status de apenas obrigatória. No meio social, as pessoas precisam valorizá-la enquanto língua, em vez de gestos ou mímica. Ela tem características próprias que a definem enquanto meio de comunicação e expressão da comunidade surda, e se é importante, assim como o inglês ou espanhol, por que não ser uma disciplina curricular para as crianças? Se for assim, no momento em que elas precisarem usar a Libras, vai ser natural”.
Texto: Alexandre Wolf – Assessoria de Comunicação ICMC/USP
Fotos: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP
Fotos: Denise Casatti – Assessoria de Comunicação do ICMC/USP
ESTA REPORTAGEM FAZ PARTE DO ESPECIAL DO JORNAL DA USP
“A MATEMÁTICA ESTÁ EM TUDO”: http://jornal.usp.br/especial/matematica/
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