Projeto de avião da USP pode reduzir até 30% o consumo de combustível

Junção inédita de duas tecnologias inovadoras nas asas e nas turbinas conseguiria economizar 12% do combustível queimado, que pode ser poupado ainda mais com as inovações previstas para os próximos 20 anos

Ao projetar um avião, uma miniatura precisa ser testada em uma estrutura chamada túnel de vento – Foto: Pedro Bravo-Mosquera

Para garantir a qualidade de vida da população mundial nos próximos anos, precisamos de uma mudança de rota capaz de frear o aquecimento global. Embarcando na discussão, pesquisadores da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP vêm traçando novos caminhos para a redução das emissões de carbono na aviação.

Pedro David Bravo-Mosquera é um dos pesquisadores a bordo de um novo conceito de aeronave comercial que apresenta novos rumos na confecção de aviões de grande porte para passageiros. O artigo Potential Propulsive and Aerodynamic Benefits of a New Aircraft Concept: A Low-Speed Experimental Study foi publicado na revista Aerospace. A pesquisa mostra parte do trabalho de doutorado de Pedro, cuja tese pode ser acessada aqui.

O projeto do avião foi feito em um modelo 28 vezes menor a fim de ser testado em túneis de vento. Comparado aos grandes jatos convencionais, o modelo de avião proposto traz uma redução de cerca de 12% no combustível queimado. Porém, uma economia de até 30% pode ser alcançada com os combustíveis alternativos e os materiais mais leves previstos para os próximos 20 anos.

O projeto combina dois recursos inovadores. Um deles é a asa em caixa, como se fossem duas asas em alturas diferentes que se juntam nas pontas, melhorando a eficiência e estabilidade do voo. Pedro Mosquera comenta que esse formato aumenta o desempenho do deslocamento em voo. “A principal vantagem desta configuração é aumento da eficiência aerodinâmica em cruzeiro e uma melhor distribuição dos esforços aerodinâmicos entre as asas, o que pode reduzir o peso da estrutura”.

A outra tecnologia implementada é a de motores junto ao corpo do avião. Nesse sistema de propulsão chamado “ingestão de camada limite”, os motores sugam o escoamento de ar ao redor da aeronave. Isso permite que a aeronave se mova com menos potência, reduzindo então o uso de combustível.

Reduzir a queima de combustível é um dos principais objetivos do projeto. A asa em caixa, por si só, aumentou a eficiência aerodinâmica em cerca de 8,2% na condição de cruzeiro, ou seja, após a subida e antes da descida. Já o sistema de propulsão por ingestão de camada limite melhorou a propulsão em 6,5%, reduzindo o desperdício de energia.

 

Como o foco é a eficiência, os aviões conseguiriam uma performance semelhante à velocidade atingida hoje, porém com maior economia de energia. Isso significa também que os trajetos poderiam ser mais longos que aviões do mesmo porte, com 180 passageiros, pois haveria menos necessidade de abastecimento com a mesma capacidade de combustível no tanque.

Asas em caixa

Pedro David Bravo-Mosquera - Foto: Arquivo Pessoal

Pedro David Bravo-Mosquera – Foto: Arquivo Pessoal

O modelo 14-bis, de Alberto Santos Dumont, utilizou asas em forma de caixa, que não eram exatamente uma novidade. Elas foram testadas em 1893 pelo engenheiro inglês Lawrence Hargrave na confecção de pipas. O conceito aerodinâmico das asas em caixa, no entanto, foi apresentado apenas em 1924 pelo físico alemão Ludwig Prandtl.

“Ele apresenta o benefício de diminuição do arrasto induzido quando há duas asas conectadas às pontas. Existe um fenômeno de vórtice de ponta em uma asa normal que pode ser reduzido se conseguirmos fazer asas mais longas, ou com uma superfície vertical na ponta delas”, explica Pedro Mosquera. Esses vórtices são gerados pela própria sustentação das asas, mas exercem uma força contrária ao movimento do objeto que está voando.

 

Primeiras pipas em formato de caixa, desenvolvidas pelo inglês Lawrence Hargrave em 1893, cujo conceito foi usado por Santos Dumont no projeto do 14-bis – Foto: Charles Bayliss/Wikimedia Commons – Licença: Domínio Público

Composição ilustrativa feita para reportagem de jornal sobre o voo de Alberto Santos Dumont a bordo do 14-bis em 12 de novembro de 1906 – Foto: Autor desconhecido/Wikimedia Commons – Licença: CC BY-SA 3.0

Fernando Martini Catalano - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Fernando Martini Catalano – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

As asas de qualquer avião são levemente voltadas para cima e criam uma diferença de pressão entre a parte superior e a parte inferior. Como a pressão na parte de cima da asa é muito menor que na de baixo, a força resultante joga o avião para cima. Quando esse ar pressionado debaixo da asas escoa pelas laterais para a parte de cima, formam-se grandes redemoinhos nas pontas. Isso introduz uma força contrária ao movimento do avião, induzida pela sustentação das asas: quanto maior a sustentação, maior é o arrasto induzido. Esse efeito é evitado quando há uma dobra voltada para cima nas extremidades.

O conceito de asas em caixa também permite a construção de aviões mais leves. “O 14-bis só voou por causa da união das duas asas feita com uma superfície que estava atrás do centro de gravidade. Não se tinha ideia disso, mas essas asas juntas, com essa superfície que tem algum tipo de efeito aerodinâmico, dão uma rigidez muito grande. Duas asas sozinhas seriam muito flexíveis, a não ser que houvesse uma estrutura muito grande em cada uma delas. Unindo as pontas ou fazendo uma caixa, isso fica muito mais resistente”, conta Catalano.

Ingestão de camada limite

O conceito de ingestão de camada limite para avião de passageiros, por sua vez, foi apresentado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) em 2017. Desde então, tem sido testado em projetos conceituais pela Nasa, a Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos.

Quando um avião voa, quatro forças atuam nele: o empuxo faz a nave ir para frente, o arrasto desacelera, o peso empurra para baixo e a sustentação nas asas compensa o peso.

Forças que atuam no avião – Foto: Wikimedia Commons – Licença: Domínio Público

Pedro Mosquera conta que, com as técnicas usadas atualmente, somente motores muito grandes poderiam diminuir o consumo de combustível. Esse aumento de tamanho, entretanto, traz outros problemas. “O motor maior vai ocupar uma área maior, o que vai produzir mais arrasto em um voo. Ele também vai ser mais pesado e, para levantar esse peso, é preciso mais sustentação. O arrasto induzido é a sustentação ao quadrado. É um efeito bola de neve. É importante saber parar para pensar uma configuração ao nível da tecnologia que temos atualmente.”

A proposta trabalha com outra ideia. Com o avião em movimento, as moléculas de ar ao redor se agrupam devido ao atrito com a superfície. Isso forma uma camada de ar com velocidade reduzida próxima à aeronave, o que aumenta a espessura total de deslocamento do objeto através do ar. Na parte da frente do avião, essa camada de ar é zero, mas vai ficando mais espessa quanto mais as moléculas de ar batem sobre a fuselagem.

Nos aviões de passageiros convencionais, os motores ficam distantes do corpo para evitar que esse fluxo caótico de ar ao longo da estrutura seja aspirado e danifique o propulsor.

No entanto, a tecnologia explora a possibilidade de incorporar motores na parte de trás da aeronave, sugando o fluxo de ar da superfície. Essa configuração exige um ventilador mais robusto capaz de corrigir os turbilhões antes que alcancem o propulsor, como explica o pesquisador. “Os vetores de velocidade que entram no motor são completamente perturbados. Uma das etapas seguintes de pesquisa é justamente pesquisar compressores que ajudem esses vetores de velocidade a serem apropriados para o correto funcionamento do motor.”

Imagem: Reprodução da pesquisa

 As dificuldades, segundo o professor Catalano, são o que mais motiva a criação de projetos inovadores.

Não conseguimos fazer nada isoladamente. Uma coisa é melhorada enquanto a outra piora. É aquele puxa de lá, puxa de cá. Por isso, trabalhar na área de otimização multidisciplinar é excitante.

Testes em túneis

Antes de produzir um avião, parte dos testes são feitos em computadores. Em seguida, uma miniatura precisa ser testada em um túnel de vento. No ambiente controlado do túnel, o vento passa como se o modelo, que fica parado, estivesse voando. Nessa etapa, uma balança mede o arrasto, a sustentação e outras forças que atuam sobre o protótipo em escala menor.

Dessa forma, é possível simular a aeronave subindo, descendo, virando, rolando e em outras condições. Os pesquisadores também medem a pressão exercida na asa e visualizam o escoamento de ar, o que permite corrigir efeitos não previstos nas simulações computacionais.

Fotos: Pedro Bravo-Mosquera

O projeto atingiu o nível três no Technology Readiness Level (TRL), uma escala desenvolvida pela Nasa para avaliar a maturidade de uma determinada tecnologia. Quando atinge o nível quatro, o mais alto alcançado exclusivamente pelas universidades, a tecnologia precisa ser submetida a testes pela indústria.

Atualmente, a EESC desenvolve quatro projetos com a Embraer. O sucesso completo é alcançado no nível nove do TRL, quando a tecnologia está implementada e é comprovadamente eficaz, um processo que normalmente leva de 10 a 15 anos.

O Brasil é um dos poucos países que concebe, projeta, constrói, certifica e vende aviões comerciais. De acordo com a plataforma alemã Statistaa indústria aeronáutica brasileira foi a 11ª maior exportadora do mundo em 2021, à frente das de Israel, Países Baixos, Suíça e Japão.

Metas ambientais

Em 2022, ainda como menor demanda devido às políticas de covid-zero em países como a China, a aviação foi responsável por 2% de todas as emissões de gás carbônico relacionadas à produção de energia no mundo, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE).

Embora seja um percentual pequeno do total, o impacto é maior porque os aviões liberam vapor e gases de efeito estufa próximos à camada de ozônio. Nas estações úmidas, os aviões deixam um rastro de fumaça formado majoritariamente por vapor d’água. As nuvens formadas assim, cheias de fuligem de querosene, têm um efeito estufa quatro vezes maior que a camada de CO2. Isso poderia ser evitado com biocombustíveis que produzem fuligem diferente, capaz de resfriar do globo terrestre.

Rastro de fumaça no céu formada por vapor e gases de efeito estufa.

De 1990 a 2019, a liberação desses gases pelas aeronaves cresceu 2,3% ao ano, superando o aumento dos transportes ferroviário, rodoviário e marítimo. Em valores absolutos, os gases emitidos pelos aviões em 2022 correspondem a 80% do nível pré-pandêmico, que deve ser ultrapassado até 2025 com a volta gradual dos voos internacionais.

A eficiência do combustível na aviação melhorou 1,8% ao ano graças à introdução de aeronaves e motores mais eficientes entre 2010 e 2019. Para alcançar o objetivo de neutralidade de carbono estabelecido pela AIE em 2050, a eficiência precisa crescer a uma média de 2% ao ano, de acordo com a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), entidade das Organização das Nações Unidas (ONU) responsável pelas atividades de transporte de pessoas na aviação mundial desde 1947.

 O professor Catalano explica que, embora não seja possível deixar de emitir poluentes, as plantações usadas na produção de combustíveis aliadas a uma maior eficiência dos aviões podem compensar o desequilíbrio de gases do efeito estufa presentes na atmosfera. “A meta de emissão zero na aviação em 2050 significa que ela será sustentável, com tecnologias de baixa assinatura de carbono, como biocombustíveis, hidrogênio verde e propulsão elétrica, por exemplo.”

Ele acrescenta que, através das inovações tecnológicas, é possível aumentar o tráfego aéreo, diminuindo a poluição. “Se nós agirmos mesmo, essa queda vai acontecer. Se não agirmos, as emissões vão sempre subir exponencialmente.”

Texto: Ivan Conterno – Estagiário, sob orientação de Valéria Dias e Luiza Caires

Arte: Gabriela Varão – Estagiária, sob orientação de Moisés Dorado

Mais informações: e-mails pedro.mosquera@embraer.com.br, com Pedro David Bravo-Mosquera, e catalano@sc.usp.br, com Fernando Martini Catalano.

Jornal da USP

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