O reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior deu uma entrevista em que relata a importância da aproximação da USP com a sociedade e como a geração do conhecimento pode se tornar um agente transformador e mudar a realidade social
No último dia 9 de novembro, o reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior participou da inauguração dos novos estúdios multiuso de rádio e TV do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Na ocasião, o dirigente foi entrevistado pelo professor e jornalista Eugênio Bucci, superintendente de Comunicação Social da Universidade, e a conversa incluiu vários assuntos acerca do momento atual da Universidade no Brasil.
O reitor falou sobre a importância da geração do conhecimento durante a pandemia de covid-19, não só da ciência em relação à vacina, mas também da cultura que auxiliou na saúde mental das pessoas durante o isolamento.
Também destacou a importância da “aproximação real (com a sociedade) para resolver problemas sociais, que possa gerar uma qualidade de vida melhor para a população”. E comentou sobre assuntos como a luta pela democracia, a autonomia universitária, a transparência total dos gastos, o ensino público e gratuito oferecido pela USP, as cotas inclusivas que “em nada alteraram a excelência do ensino e da pesquisa” e, por fim, como os princípios que nortearam a criação da USP em 1934 ainda se mantêm nos dias atuais.
Bucci: Vamos conversar sobre a Universidade e sobre o momento da Universidade no Brasil. O professor, além de administrador-gestor da Universidade, é um grande pesquisador e desenvolve linhas de pesquisas translacionais e relacionadas aos tumores do sistema nervoso e epilepsias. Aparece aqui uma palavra interessante: translacionais, e eu começo a conversa perguntando ao reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior o que quer dizer translacionais?
Carlotti: O termo translacional vem da ideia de translação, uma ideia de movimento. Em medicina, há pesquisas básicas, onde se produz anticorpos, produz células e modifica células, além do tratamento clínico dos pacientes. Mas na pesquisa translacional, você pega a pergunta clínica leva ao laboratório e tenta resolver, trazendo de volta para o paciente. Então, vamos imaginar o tratamento das células modificadas em oncologia. Você tira uma célula do paciente, modifica no laboratório e faz com que ela reconheça os tumores, e injeta no paciente novamente para que possa fazer a ação de matar um tumor. Essa é a minha medicina translacional. Você pode ter outras terminações, da beira do leito ao laboratório ou do laboratório à beira do leito, mas a ideia é essa: unificar a pesquisa clínica e a pesquisa básica.
Bucci: Quem vive na Universidade, vive em contato com o conhecimento de várias áreas, vários campos. Nós vivemos um momento no País em que a universidade é cada vez mais importante, cada vez mais essencial, porque aponta caminhos e porque desenvolve o conhecimento e ajuda a sociedade. Como é que o reitor da USP enxerga o lugar da universidade neste momento do Brasil?
A universidade sempre foi respeitada pela nossa sociedade. Há sempre uma grande admiração pela Universidade de São Paulo, mas precisamos ir além desse respeito. Precisamos transformar a Universidade, realmente, em um agente modificador da sociedade
Carlotti: A universidade sempre foi respeitada pela nossa sociedade. Há sempre uma grande admiração pela Universidade de São Paulo, mas precisamos ir além desse respeito. Precisamos transformar a Universidade, realmente, em um agente modificador da sociedade. É preciso que a sociedade perceba que ela pode melhorar se apoiar a Universidade, se puder se relacionar com a Universidade. Então, em grande parte da nossa gestão, o esforço tem sido mostrar para a Universidade que a sociedade é importante e que é para essa sociedade que nós justificamos a nossa presença, e a sociedade, com essa percepção, poder cada vez mais acreditar na Universidade e apoiar a Universidade.
A pandemia mostrou muito bem o papel da Universidade. Nós tínhamos um problema de saúde pública e utilizamos várias metodologias para estudar esse problema, desde a área da saúde como em áreas completamente diferentes que nós nunca imaginamos que pudessem ter esse papel. Por exemplo, na música, que se tornou um fator extremamente importante para a saúde mental das pessoas durante uma pandemia, com pessoas e orquestras se apresentando, dentro de suas casas, em operações on-line. Foi todo um movimento, uma geração de conhecimento da Universidade que foi transferida rapidamente para a sociedade. Então, além de vacina e de tratamento médico, todas as áreas do conhecimento se mobilizaram para resolver o problema da sociedade. É isso que devemos ter, quer dizer, além da geração de recursos humanos dos nossos alunos, além da geração do conhecimento, essa aproximação real para resolver problemas sociais, que possa gerar uma qualidade de vida melhor para a população.
Bucci: Há um outro aspecto dessa relação entre a Universidade e a sociedade que apareceu com muita clareza no dia 11 de agosto, quando a comunidade jurídica e de outros setores da sociedade, movimentos sociais e entidades empresariais leram um manifesto de apoio à democracia no Brasil. Algo que chamou muito a atenção é que o reitor da USP estava na mesa dessa grande concentração e desse dia histórico, de um o ato que se deu numa das escolas da Universidade de São Paulo, que é a Faculdade de Direito, e suas palavras lembraram, entre outros fatos importantes, o desaparecimento de 47 pessoas ligadas à USP por força da repressão política durante a ditadura militar. Por que lembrar esse momento e por que a Reitoria da USP e a Universidade de São Paulo tomando parte num ato de defesa da democracia?
Eu entendi que nesse momento em que nós tínhamos pessoas de destaque da sociedade defendendo uma volta ao passado, uma perda de direitos, uma perda da democracia, uma dificuldade de entender o processo de votação eletrônica, eu acho que era hora de a Universidade se manifestar em função de princípios
Carlotti: Quando nós olhamos a história da Universidade, vemos que ela teve diferentes momentos, a maior parte desses momentos apoiando a democracia, apoiando os recursos, os direitos humanos, mas não foi sempre assim. Eu entendi que nesse momento em que nós tínhamos pessoas de destaque da sociedade defendendo uma volta ao passado, uma perda de direitos, uma perda da democracia, uma dificuldade de entender o processo de votação eletrônica, era a hora de a Universidade se manifestar em função de princípios. A Universidade não tem partidarismo político, mas ela tem princípios e esses princípios precisam ser respeitados. Essa foi nossa manifestação e eu fico muito contente de ver que essa manifestação da Universidade, da sociedade civil e de vários atores importantes foram suficientes para inibir comportamentos inadequados que estavam surgindo na nossa sociedade. Então, a partir do dia 11 de agosto, houve uma diminuição muito grande do desejo de voltar à ditadura, houve uma confiança muito maior no processo eleitoral e o processo eleitoral pôde ocorrer, e uma transição política pôde ser feita no País sem muitos problemas por causa daquele movimento.
Eu acredito que a sociedade, com a Universidade presente, mostrou que não vamos aceitar retrocesso no País. Se não tivéssemos aquele ato, se houvesse um incremento dessas manifestações contra a democracia, a favor de uma volta ao passado, de perdas de liberdades, talvez a história fosse diferente. Eu fico feliz que nós conseguimos participar desse momento e dizer para esses interlocutores, que queriam fazer alguma coisa diferente, que a sociedade não aceita esse comportamento. Então você tem Universidade, sociedade civil e pessoas importantes, representantes sociais, que não aceitam retrocesso no País. E como a Universidade teve um grande número de alunos, professores e servidores mortos durante esse período, eu não poderia me calar, eu precisava deixar muito claro para a sociedade que a Universidade, apoiada por seus alunos, professores e servidores, não deixaria isso acontecer, não faria parte disso. Acho que mudou o discurso, antes e depois de 11 de agosto.
Bucci: Uma ideia, que é muitas vezes difícil de ser assimilada por setores diferentes da sociedade, é da autonomia universitária. Nós acabamos de lembrar um momento em que a Universidade vai a público, se manifesta em um ato coletivo de várias entidades para defender a democracia, a liberdade, a justiça social e o respeito à dignidade humana, todas essas bandeiras, que compõem a vida rotineira das sociedades modernas, justas e livres. Uma peça fundamental talvez seja a autonomia universitária, ou seja, a Universidade existe, pesquisa, ensina, forma pessoas, mas isso precisa ser feito com autonomia. Como é que seria possível explicar a razão de ser da autonomia? Por que que a autonomia é tão importante? Por que os setores, as diversas facções e os diversos segmentos da Universidade valorizam tanto a autonomia?
Mais importante do que dinheiro, do que contratações ou de cuidar dos nossos prédios é autonomia, porque ela permite uma liberdade de pensamento, de posicionamento, de ensino, de avaliação, uma liberdade de gestão econômica da Universidade e de apontar caminhos novos
Carlotti: Eu tenho dez meses de gestão à frente da Universidade de São Paulo e, se eu pudesse escolher um fator importante, eu diria que é a autonomia universitária. Mais importante do que dinheiro, do que contratações ou de cuidar dos nossos prédios é autonomia, porque ela permite uma liberdade de pensamento, de posicionamento, de ensino, de avaliação, uma liberdade de gestão econômica da Universidade e de apontar caminhos novos. Imaginem um político, um deputado, um senador, ou um agente público aqui dentro da Universidade mostrando o que deveríamos fazer. Isso seria um desastre para a Universidade. Por isso devemos lutar o tempo todo pela autonomia. Certamente tem pessoas que gostariam de interferir na Universidade em seus diferentes aspectos, por isso não podemos abrir mão da autonomia. Eu acredito que a autonomia universitária, autonomia de pensamento, autonomia de pesquisar e de ensinar são valores positivos para a Universidade, e mostrou através dos anos que conseguimos efetivar várias realizações, que conseguimos modificar a sociedade. Se ficássemos restritos às opiniões externas, ou restritos a algumas ações do que alguém acha que seria importante para a Universidade, acredito que isso seria um desastre. Não podemos abrir mão, autonomia é fundamental.
Eu vivi alguns momentos, neste curto período de gestão na Reitoria, em que houve algumas interferências externas e fui incisivo de que não aceitaríamos modificações vindas de agentes externos da Universidade. Todo reitor, professor, servidor e aluno, deve “brigar’ pela autonomia. Não é simples, mas não podemos permitir nenhum tipo de interferência.
Bucci: Aprofundando um pouco a pergunta, de fato para existir o ensino é preciso que exista aquilo que nós chamamos de liberdade de cátedra. Dentro da sala de aula, o professor é inteiramente livre para conduzir os debates, para expressar pontos de vista sobre o material que ele considera importante no ensino, para trazer diferentes ângulos. Não há nenhuma coerção ou o ensino não seria possível. Na pesquisa, imaginemos como seria possível o avanço da ciência se não houvesse liberdade de perguntar. O senhor como professor e pesquisador sabe muito bem, pela experiência, que não conseguimos pesquisar se não há liberdade de perguntar. Por isso também a liberdade acadêmica é tão imprescindível para que o conhecimento avance. Conhecimento não repete o que já é sabido. É possível, nesse contexto, apontar em que momentos a Reitoria da USP sentiu a iminência ou o perigo de alguma interferência? Estamos cercados de discursos que ameaçam a Universidade, mas houve algum momento que poderia ser lembrado?
Eu acredito que o importante na autonomia do professor e do cientista é a curiosidade. Se tolhermos a curiosidade, não vamos fazer descobertas importantes
Carlotti: Eu acredito que o importante na autonomia do professor e do cientista é a curiosidade. Se tolhermos a curiosidade, não vamos fazer descobertas importantes. Quando o Fleming (Alexander Fleming) olhou uma placa de Petri e viu que não tinha bactéria ao redor de uma colônia de fungos, se não tivessem dado liberdade a ele de olhar essas placas de Petri, pensar e modificar o que ele estava fazendo, não teríamos descoberto a penicilina. E assim vários exemplos, quem estava estudando durante a guerra, mecanismos de busca de navios e de submarinos, acabou descobrindo o tomógrafo. Então essa liberdade é fundamental em ciências. Se eu for determinar a cada pesquisador aquilo que ele vai descobrir, esqueçam, não vamos chegar a resultado nenhum na Universidade. Nós vamos, como você disse, repetir experiências anteriores e nunca avançar num conhecimento novo.
Então a curiosidade é muito importante e isso vale internamente também. O reitor, um diretor de unidade, um chefe de departamento, obviamente, tem a função de coordenar, de fazer uma série de trabalhos, mas nunca se deve tirar a liberdade e a curiosidade dos nossos alunos, dos nossos professores, dos nossos servidores, porque é daí que surge a ideia de inovação. No passado recente, tivemos alguns movimentos para tirar essa autonomia; o mais claro que podemos citar é o da autonomia financeira. E fazer o contingenciamento dos nossos valores econômicos seria muito ruim para a Universidade. Devemos ter essa liberdade, manter a liberdade econômica de fazermos o nosso planejamento, obviamente, prestando conta ao Estado e sendo responsáveis. Não podemos perder essa responsabilidade, mas ao mesmo tempo essa autonomia nos dá liberdade de planejamento, liberdade de olhar para o futuro.
Bucci: A USP, com o Portal da Transparência, tem todos os números abertos, quanto eu ganho por mês, quanto é o salário do reitor, tudo isso é aberto, quanto foi investido em cada passo. A ideia de autonomia é acompanhada de uma ideia de responsabilidade, e um tema de responsabilidade, de prestação de contas, tudo isso é parte da nossa rotina, de uma grande universidade como essa, uma das universidades de mais projeção na América do Sul, a principal universidade do Brasil, segundo todos os rankings, e isso tudo nos traz muita responsabilidade. Mas, professor, e o ensino público e gratuito. Nem sempre o ensino público é gratuito. Há exemplos fora do Brasil de universidades públicas que cobram anuidades, e são anuidades bem abaixo daquelas cobradas por universidades privadas. Mas há ensino público em que existe a cobrança de anuidade. A USP se estabeleceu e encontrou sua fórmula de equilíbrio, de permanência e de excelência com o ensino público e gratuito. Por que isso é tão importante para definição, para identidade e para vocação da USP?
O ensino público e gratuito no Brasil é fundamental. Eu não pensaria em modificar esse modelo de maneira nenhuma. Nós temos uma diversidade econômica e alguns gaps dentro da nossa sociedade muito grandes
Carlotti: O ensino público e gratuito no Brasil é fundamental. Eu não pensaria em modificar esse modelo de maneira nenhuma. Nós temos uma diversidade econômica e alguns gaps dentro da nossa sociedade muito grandes, então não teria sentido nós colocarmos numa universidade dois grupos, aquele grupo que paga anuidade e aquele grupo que não paga anuidade, criando uma divisão entre os nossos alunos. Isso seria muito ruim para a Universidade. Quando pensamos em universidades do exterior, Harvard ou mesmo a Universidade da Califórnia, o valor obtido com a anuidade gira em torno de 10% a 13%, então é um valor muito pequeno, sendo que o maior financiamento dessas universidades é governamental, ou é um financiamento, no caso da Harvard, com endowments de ex-alunos que mantêm a universidade, mas nunca é um valor grande. Então, eu acredito que no Brasil, na Universidade de São Paulo especificamente, seria um fator de divisão e um fator complicador de gestão da Universidade, sem grandes benefícios. Sou totalmente contra o ensino pago, mesmo para pessoas que teriam condições de pagar porque isso criaria uma divisão, com um valor relativamente pequeno de anuidades e geraria muitos problemas internos. Acredito que é importante que todos os alunos que entram na Universidade se sintam iguais, que haja essa noção de pertencimento da Universidade e que todos possam conviver em condições de igualdade e não criar diferenças entre os nossos alunos desnecessárias. Se daqui a 40 ou 50 anos, a nossa população for diferente e houver uma maior homogeneidade nos ganhos da população, poderia se pensar nisso – se estivermos num nível de Suécia ou de Noruega, mas não neste momento aqui no Brasil. Então, eu defendo o ensino público e gratuito na Universidade com muito vigor.
Bucci: De fato, quando se analisam as planilhas, a contabilidade de universidades que cobram anuidade ou mensalidade, vemos que o custo da pesquisa, o custo da busca do conhecimento jamais é coberto por esse tipo de contribuição. E mesmo por conta de dificuldades que surgem na gestão vemos, por exemplo, hoje no MIT (Massachusetts Institute of Technology), alguns departamentos, algumas áreas buscando uma gratuidade total para todos os alunos, e o MIT não é uma universidade pública, mas o ensino melhor, o ambiente melhor é aquele em que não há cobrança. Um dado importante que devemos considerar é que muitos pensam, até hoje, que quem estuda na USP são pessoas ricas ou de classe média alta, mas isso não é verdade desde a origem da USP, e, principalmente hoje, me parece que não há nenhum cabimento nesse tipo de suposição porque nós temos os alunos que entram aqui pelas cotas sociais, cotas raciais. Como está essa situação hoje na USP?
Nós temos hoje 50% alunos de escolas públicas, e destes 37,5% são alunos PPI (pretos, pardos e indígenas) e isso modificou o perfil do nosso alunado (e isso tem sido um ganho muito grande para a Universidade). Nós mantivemos as condições de excelência no ensino da pesquisa, mantivemos a nossa produção acadêmica, mantivemos a nossa posição em rankings
Carlotti: Você comentou de universidades do exterior e o movimento é esse mesmo, eu percebo que as universidades grandes do exterior querem receber os melhores alunos, independentemente da condição financeira, então eles vão aumentando os programas de bolsas para garantir que o bom aluno entre nessas universidades e não aquele aluno que tem condições de pagar anuidade. Isso é uma mudança grande e faz sentido com o que estamos fazendo aqui na Universidade. Desde 2017, quando foi aprovado pelo Conselho Universitário as cotas, e implementadas a partir de 2018, tem sido um ganho muito grande para a Universidade. Nós temos hoje 50% de alunos de escolas públicas, e, destes, 37,5% são alunos PPI (pretos, pardos e indígenas) e isso modificou o perfil do nosso alunado. Nós mantivemos as condições de excelência no ensino da pesquisa, mantivemos a nossa produção acadêmica, mantivemos a nossa posição em rankings e os estudos que foram feitos, principalmente por uma pesquisadora da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), a professora Marta Arretche, mostram que os alunos entram na Universidade com uma certa diferença de notas, mas durante o curso de graduação essa diferença vai diminuindo e vai ficando quase inexistente ao final do curso da graduação. Então a nossa tarefa atual é diminuir esse tempo que acontece na graduação para que essas notas sejam igualadas logo no começo do curso e não somente no final. Para isso estamos trabalhando com várias políticas, de inclusão e pertencimento, para que o aluno tenha melhores condições financeiras e acadêmicas, tranquilidade para poder fazer o seu curso e um mecanismo de tutoria durante a sua graduação. Se fizermos isso, essa diferença inicial, logo no primeiro ou segundo ano, vai diminuir e o aluno vai poder ter o melhor rendimento durante a sua graduação, terminando nas mesmas condições.
Outra preocupação que eu tenho é a empregabilidade dos nossos alunos. Quando se é de uma classe social menos favorecida, as suas relações pessoais, se pensarmos em mercado de trabalho, não são tão bem estabelecidas. Então é importante que criemos um mecanismo para que esses alunos possam ser estagiários ou trainees nas suas áreas de conhecimento, para que ao final da sua graduação possam ter boas oportunidades de emprego, uma boa empregabilidade assim como os alunos que têm uma condição social melhor, que geralmente formam uma rede de comunicação melhor. São todas essas iniciativas que devemos garantir para o nosso aluno, esse aluno cotista que entra com uma capacidade e um potencial muito grande, e o nosso trabalho é lapidar esse conhecimento, lapidar esse potencial para entregarmos para a sociedade um profissional bem formado.
É importante dizer que nós não tivemos prejuízo na excelência da Universidade, ganhamos com a presença desses alunos porque a diversidade também traz para a pesquisa novas perguntas. Se tivermos todo mundo pensando da mesma forma, as perguntas de uma pesquisa vão ser limitadas, mas se você tem mentes diferentes e condições sociais diferentes, as perguntas vão ser diferentes, e o resultado da sua resposta será melhor também. Não tenho dúvida do sucesso do nosso programa, é preciso dar melhores condições para que esses alunos atinjam esse desenvolvimento o mais rápido possível.
Bucci: Eu, como professor, vejo na sala de aula que a vinda dos cotistas, em nada, em nenhum momento, em nenhum critério, piorou o desempenho da turma e o rendimento das atividades de ensino e de pesquisa com esses alunos. É interessante ouvir do reitor da USP que o quadro geral é o mesmo. Hoje já existem estudos e já temos resultados mensurados mostrando que não houve diminuição do ritmo, não houve queda de desempenho e não houve quebra de excelência. É isso mesmo?
Um ponto importante é que não há outro mecanismo, além da educação, para que se possa fazer mudança social. Há programas, mas o dinheiro investido na educação é o que vai tirar o nosso Brasil dessa grande desigualdade social que nós temos
Carlotti: É isso mesmo. Nós estamos seguindo esses dados e fazendo ações para que esses dados, como eu disse, se tornem mais rápidos na avalição do nosso aluno. Mas é exatamente isso, nós mantivemos a nossa excelência, e acho que até com maior nível de excelência, porque há uma visão mais heterogênea de perguntas para a nossa graduação, para nossa pós-graduação e para nossa pesquisa. Esse é um programa de sucesso na Universidade e é uma resposta à sociedade do que nós podemos fazer com o desenvolvimento humano do Brasil. Se nós utilizarmos no ensino médio, por exemplo, um ensino de melhor qualidade, imagine o potencial que vamos ter, não só desses alunos que conseguem entrar na Universidade, mas todo o grupo de alunos que se forma no ensino médio que poderia estar em uma atividade mais qualificada e mudar a sociedade. Um ponto importante é que não há outro mecanismo, além da educação, para que se possa fazer mudança social. Há programas, mas o dinheiro investido na educação é o que vai tirar o nosso Brasil dessa grande desigualdade social que nós temos.
Bucci: Isso me leva à pergunta de encerramento. A USP foi criada em 1934 por um ato do então interventor Armando de Salles Oliveira, cuja figura está em bronze aqui na entrada do campus do Butantã, em São Paulo. E a Universidade de São Paulo foi criada com base na filosofia para desenvolver o conhecimento, para formar quadros bem preparados. Existia na época uma visão do que deveria ser o futuro de São Paulo e que hoje nós podemos, por extensão, dizer o futuro do Brasil e foi um projeto muito bem-sucedido. É impossível imaginar o Brasil sem a USP, é impossível imaginar a história do Brasil de 1940 até hoje sem os quadros da Universidade de São Paulo, sem o conhecimento gerado pela Universidade de São Paulo. Se a Universidade tivesse sendo criada hoje, ou no ano de 2022, o reitor da USP quando olha para o futuro, o que ele enxerga?
Eu acredito que os princípios com os quais a Universidade foi criada são bem fundamentados, que o decreto de criação quando lido hoje tem muita validade e atualidade. Os princípios do decreto, a excelência do ensino e da pesquisa, a comunicação com a sociedade, o papel de inovação que foram pensados são muito atuais
Carlotti: Eu acredito que os princípios com os quais a Universidade foi criada são bem fundamentados, que o decreto de criação quando lido hoje tem muita validade e atualidade. Os princípios do decreto, a excelência do ensino e da pesquisa, a comunicação com a sociedade, o papel de inovação que foram pensados são muito atuais. O lema do brasão da USP: “Vencerás pela Ciência” também é bastante atual. Quer dizer, o que estamos falando hoje, que precisamos nos aproximar da sociedade, que precisamos da ciência e da educação para modificar a nossa população já foi pensada lá em 34. Agora, é claro, são outros tempos, outras necessidades, outras ferramentas que você pode utilizar, mas eu acho que o documento de criação da Universidade é muito atual.
Os princípios da Universidade de São Paulo se mantêm até hoje, mas é claro que quando se olha para o momento atual é preciso pensar na inclusão, no pertencimento, numa igualdade maior que não tinha o conceito tão forte anteriormente. Nós precisamos pensar na inovação, precisamos pensar em modificar a sociedade, precisamos pensar a Universidade não somente como transmissora de conhecimento, mas permitir que esse conhecimento seja feito junto a indústrias, junto ao poder público, além de pensar políticas públicas. Eu acredito que há alguns detalhes que modificam a Universidade atual daquela criada em 34, mas os princípios devem ser mantidos, como aqueles de criar um aluno diferenciado, de criar um aluno que modifique a sociedade, que converse com a sociedade. Eu não mudaria nada. Agora é claro que você precisa dar um ar atual para aquele momento que vivemos hoje, mas o princípio é o mesmo desde a nossa criação.
Clique no player e confira a entrevista concedida pelo reitor Carlos Gilberto Carlotti Junior a Eugênio Bucci
Trajetória pessoal
O atual reitor da USP Carlos Gilberto Carlotti Junior é médico, neurocirurgião formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde foi diretor entre 2013 e 2016, e também diretor clínico do hospital. Foi também presidente da Fundação de Pesquisas Médicas de Ribeirão Preto e pró-reitor de pós-graduação da Universidade de São Paulo. Segundo Bucci, em sua atuação na Pró-Reitoria, incentivou a excelência da formação dos discentes e da produção científica, e manteve interações constantes com instituições de pesquisa, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Carlotti participou da mudança do Regimento da Pós-Graduação da USP em 2018, introduziu ferramentas quantitativas e qualitativas para gestão dos programas de pós-graduação, coordenou a aprovação do programa de internacionalização da Capes para a USP e expandiu o programa de dupla titulação entre outros projetos relevância. Também é pesquisador, desenvolvendo linhas de pesquisas translacionais e relacionadas aos tumores do sistema nervoso e epilepsias.
Por Jornal da USP
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