Grupo de trabalho criado na USP reuniu 39 propostas, que devem ser articuladas entre as políticas públicas existentes, ressaltando a importância da transparência e atualização de dados e a participação da sociedade civil
O combate à fome e à insegurança alimentar passa pela necessidade de articulação entre políticas públicas existentes nos diversos níveis da administração pública. Além disso, demanda reforço da transparência e da atualização de dados, bem como da participação da sociedade civil, de forma a melhorar a gestão de recursos humanos e financeiros a fim de alcançar resultados duradouros e robustos na mitigação do problema. Essa é a síntese do relatório final produzido pelo GT USP Políticas de Combate à Insegurança Alimentar e à Fome, que envolveu uma equipe multidisciplinar de 12 docentes e 14 pós-graduandos e pós-doutorandos das áreas de Ciências Humanas, Ciências Biológicas e da Saúde, Ciências Sociais Aplicadas e Ciências Exatas da Universidade de São Paulo. Ao final de 16 meses de atuação, o relatório apresenta 39 propostas dentro de uma visão sistêmica da fome, “essencial para garantir melhores indicadores de execução e resultados”. Clique aqui e acesse o relatório na íntegra.
Coordenado pelos professores Sílvia Helena Galvão de Miranda, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), e Marcelo Cândido da Silva, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), ambas da USP, o grupo foi criado 2021, para estudar e propor políticas públicas e ações concretas para a melhoria da situação nutricional das populações mais vulneráveis. Para isso, o grupo alinhou-se em torno do modelo de sistemas alimentares e em conceitos, da fome e segurança alimentar, além de discutir o monitoramento e diagnóstico da situação de Insegurança Alimentar e Nutricional (InSAN). Para dar base às propostas, os pesquisadores desenvolveram estudos empíricos ou reflexões críticas da literatura científica. O primeiro conjunto de propostas e recomendações possui um escopo mais amplo, seguido de propostas a partir dos três estudos de caso desenvolvidos nos municípios de São Paulo (capital), Piracicaba (interior) e Santos (litoral).
Como dizem os coordenadores na apresentação do relatório, num primeiro momento, a discussão sobre os conceitos foi parte fundamental do diagnóstico da fome e da insegurança alimentar, e também condição essencial para o estabelecimento de políticas eficazes visando a combatê-las. “O monitoramento das políticas públicas foi acompanhado de um diagnóstico acerca do funcionamento e dos resultados obtidos por tais políticas, pela compilação dos indicadores de insegurança alimentar disponíveis, bem como de proposições destinadas ao aperfeiçoamento das medidas em vigor (…). O GT buscou articulação com grupos de pesquisa e órgãos governamentais e não governamentais atuantes na investigação e no combate à fome e à insegurança alimentar”, explicam.
Problema grave
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2013 e 2018, a insegurança alimentar grave teve um crescimento anual de 8,0%. Além disso, os resultados do I Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), mostram que nos três meses anteriores à coleta de dados (dezembro de 2020), 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos e, desses, 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome, número que aumentou em 2022 para 33,1 milhões. O relatório reúne propostas para o combate à fome, mas sem a pretensão de trazer uma solução simples a um problema tão complexo, como está descrito na introdução.
O Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA), garantido constitucionalmente, engloba a resolução da questão alimentar, desafio ainda mais complexo do que somente promover a distribuição de alimentos ou estimular iniciativas localizadas de geração de empregos. Segundo os pesquisadores, “estas ações são, indubitavelmente, indispensáveis, mas precisam ser articuladas com outras voltadas para os demais aspectos problemáticos do sistema alimentar vigente, desde a produção até o armazenamento, processamento, distribuição e o padrão de consumo. Estes aspectos e, consequentemente, as ações devem levar em consideração questões ambientais, antropológicas, tecnológicas e muitas outras que forçam a uma reflexão multidisciplinar e ao estabelecimento de uma estratégia integrada de enfrentamento do problema”.
Propostas do grupo
Cada uma das 39 propostas está acompanhada de sua respectiva justificativa. Entre as propostas gerais estão: estabelecer e reforçar políticas públicas abrangentes por meio de programas de renda mínima e de capacitação para melhorar a empregabilidade; priorizar como alvo as mulheres dos grupos mais vulneráveis; ampliar e atualizar o Cadastro Único, de forma a garantir que todos os brasileiros que necessitem tenham acesso aos programas sociais de transferência de renda; fortalecer as ações de educação alimentar e nutricional para a população; criar e capacitar uma rede de gestores públicos municipais para a difusão de boas práticas na formulação, implementação e monitoramento das políticas de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN); construir plataformas on-line no âmbito municipal para a coordenação de organizações e iniciativas locais da sociedade civil para a mitigação da insegurança alimentar; garantir a disponibilização e acesso às informações sobre os resultados dessas iniciativas, de forma a fortalecer a transparência e os mecanismos de controle social, entre outras.
Além das propostas referentes aos estudos de caso, que podem se adequar a outros municípios do Estado de São Paulo, o relatório traz ainda importante reflexão sobre o papel da inteligência artificial e da comunicação no planejamento, implementação e monitoramento e análise de impactos de políticas públicas. Como descreve, “o objetivo final da utilização da ciência de dados e a inteligência artificial é a disponibilização de ferramentas de análise e auxílio à tomada de decisão, permitindo a avaliação de diversos cenários considerados relevantes pelos diferentes atores envolvidos”. Além disso, aponta a comunicação como essencial para o sucesso de uma política pública, não somente para assegurar a transparência em sua execução, mas ao longo de todo o processo regulatório, desde a identificação das prioridades da sociedade, passando pelo planejamento da intervenção do Estado sobre o objeto da regulação, pela sua implementação, e também para dar conhecimento à sociedade de seus resultados e integrar a percepção da mesma sobre sua efetividade. “O combate à fome e à insegurança alimentar, problema tão complexo no Brasil, requer uma estratégia de comunicação pública”, ressalta o relatório.
Guia de análise
Como ferramenta de auxílio à tomada de decisão, a equipe da USP apresenta um Guia de Análise da Insegurança Alimentar para gestores públicos. De acordo com o documento, a proposta de elaboração de um guia para o desenho e análise de iniciativas da sociedade civil e de políticas públicas de SAN “tem por objetivo fornecer ao gestor público e aos atores sociais elementos para o desenho de políticas públicas, bem como um aparato conceitual para a análise e acompanhamento de programas relacionados direta ou indiretamente à mitigação da insegurança alimentar”. O relatório complementa a informação destacando que “a diversidade dos municípios paulistas em termos de tamanho, dotação de recursos materiais e humanos, bem como na inserção nos sistemas agroalimentares, justifica a elaboração de uma ferramenta de apoio ao gestor na análise da situação local e das articulações possíveis com as demais esferas de governo e com as organizações da sociedade civil. A insegurança alimentar emerge em diversas situações, demandando a elaboração de políticas públicas alinhadas a suas naturezas e causas, ao mesmo tempo compatíveis com a disponibilidade de recursos”.
Finalmente, o relatório reforça que “não basta apontar os problemas na implementação das políticas públicas, é preciso identificar onde estão os gargalos”. Assim, os pesquisadores salientam que, nesse momento, “a pesquisa científica tem papel fundamental, pois ao gerar e disponibilizar informações para a sociedade, cria-se um “corpo de vozes” qualificadas para monitorar e cobrar a atuação eficiente e sistemática do poder público. “Nesse mesmo sentido, é fundamental e imprescindível a atuação do Poder Legislativo. O exercício da função de propositor de políticas de combate à insegurança alimentar, assim como de fiscalizador do pleno funcionamento dessas políticas, é urgente e determinante neste momento tão crítico da história brasileira”, alertam.
Continuidade da pesquisa
A equipe, a partir de agora, ganhará um reforço de outras 15 universidades brasileiras e estrangeiras, bem como da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que darão continuidade ao trabalho iniciado no âmbito da USP, aprofundando vários dos pontos abordados no relatório. Em dezembro de 2022, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) aprovou a criação do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Combate à fome: estratégias e políticas públicas para a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada – Abordagem transdisciplinar de sistemas alimentares com apoio de inteligência artificial. Neste INCT, serão conduzidos estudos sobre a insegurança alimentar e os desafios e estratégias para atendimento do direito humano à alimentação adequada.
Para acessar a publicação Propostas de Combate à Fome e à Insegurança Alimentar – Relatório Final clique aqui.
Com informações de Caio Albuquerque, da Assessoria de Comunicação da Esalq – Jornal da USP