Nova edição da revista traz dossiê sobre cinema e educação, organizado pelo professor Rogério de Almeida, da Faculdade de Educação da USP

Capa da nova ediçao da “Revista USP” – Foto: Revista USP
Cinema, audiovisual, educação digital e representatividade. Esses são alguns dos temas abordados na edição número 145 da Revista USP, que acaba de ser lançada. Publicada pela Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP, a revista traz o dossiê Cinema e Educação, que tem oito artigos, além de um texto sobre o ensino superior chinês, um ensaio de fotos e uma resenha sobre o novo lançamento da coleção Editando o Editor, da Editora da USP (Edusp) e da editora Com-Arte. A “vocação pedagógica” do cinema é trazida já no Editorial, assinado pelo jornalista Jurandir Renovato, e é abordada com diferentes enfoques nos artigos. A revista, dividida em seções, está disponível gratuitamente neste link.
O cinema na educação
Já no texto de apresentação dos artigos sobre cinema e educação, assinado pelo professor Rogério de Almeida, da Faculdade de Educação da USP, organizador do dossiê, é possível entender como se deu, ao longo dos anos, a relação entre cinema e educação. Ele cita o fato de que as imagens em movimento já eram utilizadas pela educação em alguns países antes mesmo da existência do cinema. Uma vez que ele foi inventado, porém, passou a haver, mesmo que de início, uma desconfiança no que dizia respeito à capacidade do cinema de ficção de ser utilizado para fins educativos. Segundo Almeida, enquanto os documentários passavam a ideia de instrução, as ficções passavam a ideia de distração. Esse pensamento foi endossado por estudiosos da Escola de Frankfurt, críticos do modelo de filmes voltado majoritariamente para o entretenimento. O professor termina sua análise salientando que, a partir do século 21, com o avanço da tecnologia, “o saber advindo dos mitos, das narrativas e das imagens é tão ou mais complexo que o próprio saber científico”, devido à forma como se conecta com o ser humano.
É a partir dessa linha de pensamento que os oito artigos do dossiê se desenvolvem, sendo os quatro primeiros focados em ferramentas de educação com o uso do cinema de forma crítica na contemporaneidade e os outros quatro abordando a diversidade no cinema. No primeiro quadro, o artigo “Acervos audiovisuais digitais no contexto da educação digital: políticas, desafios e possibilidades”, de Adriana Fresquet, tem como ponto de partida as políticas públicas do Brasil para a inclusão do audiovisual na educação. Segundo Fresquet, mais do que trazer o cinema como ferramenta educacional, “a crescente presença do audiovisual no ensino e na vida cotidiana demanda políticas de formação docente e curadoria digital para evitar uma abordagem meramente técnica”. Além disso, ela cita a Lei nº 13.006/2014, que prevê que o ensino com o uso do audiovisual passe, também, pela exibição de filmes brasileiros nas escolas.
O espaço escolar aparece novamente em “Dos registros filmados ao vir a ser filmes para mostras de cinema: experimentações de uma profissional da educação infantil”, de Wenceslao Machado de Oliveira Jr., Aline Gonçalves de Souza Arena e Gabriela Fiorin Rigotti, que traz um exemplo prático de educação cinematográfica com crianças de uma forma natural, para além da técnica.
O trabalho colaborativo também aparece em “Educação midiática e cinema nos cenários da cultura digital: literacias dinâmicas, terceiro espaço e designer de significados”, por Monica Fantim. Mais do que incentivar a articulação entre cinema e educação, ela propõe que o senso de crítica e de reflexão sobre o audiovisual seja aplicado, também, às ferramentas tecnológicas, como a inteligência artificial, e ao uso não alienado da tecnologia, algo que deve ser um objetivo das escolas.
Como alternativa para essas questões, Rógerio de Almeida apresenta, em “Metacinema e educação do olhar: entre os imaginários da ilusão e da disrupção”, o uso do que ele chama de “metacinema” como recurso pedagógico. Segundo ele, “os filmes demandam pedagogias do olhar que ultrapassem a noção de que o cinema representa a realidade, pois a imagem tem uma dupla condição: é simultaneamente imagem em si e também imagem de algo”. Dessa forma, ele argumenta que a experiência estética do cinema proporciona, inclusive, que se amplie o olhar crítico para a própria vida em si. Para isso, ele propõe a divisão das obras metacinematográficas entre ilusórias, disruptivas e híbridas, nomes dados de acordo com o grau de adensamento do olhar proporcionado por elas.
A seguir, Celso Luiz Prudente analisa a representação da figura negra no cinema com o passar dos anos. O artigo “Do surgimento do cinema negro à construção da Mostra Internacional do Cinema Negro” tem como ponto de partida a diferenciação entre duas concepções, a do “negro no cinema”, que figura como um objeto, “sem domínio sobre sua própria imagem”, e a da “étnico-cinematografia afrodescendente”, que, por meio do cinema negro, rompe com a primeira ideia e permite a conquista do domínio de sua própria imagem pelo afrodescendente. No Brasil, esse processo, que passa pela humanização de suas representações e pela superação de estereótipos, está, para o autor, ligado ao cinema de Glauber Rocha (1939-1981): “O Cinema Novo de Glauber Rocha elegeu o negro e sua cultura como referencial estético”, o que vinculava-se, inclusive, ao uso das cores preto e branco na fotografia, “representando binariamente o conflito social: o negro e sua cultura simbolizavam o proletariado e o desdobramento da pobreza, enquanto o branco representava a burguesia e a relação de poder”, em uma sociedade onde “raça e classe se entrelaçam”.
O artigo “As crianças Guarani no cinema indígena: no corpo-câmera, a mobilidade Guarani”, de Ingrid Oyarzábal Schmitz e Fabiana de Amorim Marcello, destaca o caráter pedagógico, coletivo e contra-hegemônico do cinema indígena, ao afirmar, por meio do conceito de corpo-câmera, que “esses filmes evidenciam a importância do grupo a que pertencem, por meio da história que produzem na qualidade de narrativa fílmica”.
Ana Cláudia Melo, em “História e cinema LGBTQ+: entre memórias e esquecimentos”, traz essa análise para o campo do apagamento das figuras LGBTQ+ do cinema, que fingia que elas não existiam ou as estereotipava. Ela cita cenas de beijos entre pessoas do mesmo sexo em produções mainstream hollywoodiano do audiovisual, que proporcionaram o início da superação desse apagamento e o início da construção de uma memória. Para ela, cinema e história devem ser pensados, no âmbito da educação, por meio do conceito de “multiplicidade” e, assim, inclusiva também aos LGBTQ+.
O último artigo do dossiê, “Cinema das margens e a suspensão do futuro”, de Antonio Carlos Rodrigues de Amorim, parte de duas produções cinematográficas, uma brasileira (Arábia, 2017) e outra libanesa-canadense (l untitled part 3: (as
if) beauty never ends, 2004), para explorar o que chama de “deslocamento de narrativas temporais lineares” na análise do “cinema das margens” — que se refere ao cinema que representa grupos sociais marginalizados e minoritários política ou socialmente. A ideia dele é, por meio do conceito de “suspensão do futuro”, fugir ao clichê de exibir histórias com começo, meio e fim, muitas vezes com um final clichê, utópico e redentor. Com isso, realça-se a incerteza e a vulnerabilidade da existência de um futuro para esses grupos, diante de um presente onde já se faz necessário lutar por sua sobrevivência, o que ele afirmar deixar “incerta a possibilidade de as existências minoritárias se corporificarem em futuros por vir”. Isso se explicita na análise de Arábia, por exemplo: o filme deixa tão claro o esgotamento dos trabalhadores em seu trabalho que vislumbrar um futuro parece quase impossível.
Outras seções
A revista traz, ainda, mais três seções. A primeira, Textos, apresenta “O ensino superior chinês no contexto da globalização”, por Carlos Benedito Martins e Victor Junqueira Luz. O artigo aborda as transformações no ensino superior da China diante da Revolução Cultural no país (1966-1976) e da globalização, trazendo como pontos de destaque o aumento no número de matrículas e de projetos de excelência e de internacionalização, ainda que as desigualdades sociais e o controle do Estado sejam pontos problemáticos a serem observados. Já a seção Arte apresenta um ensaio fotográfico da Tunísia feito pelo fotógrafo Atílio Avancini, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. As fotografias vêm acompanhadas de um texto que destaca a presença massiva de sítios arqueológicos e de ruínas antigas no país, com discussões sobre a arquitetura, a cultura e a religião tunisianas, que combinam diferentes origens e identidades.

Uma das fotos de Atílio Avancini publicadas na nova edição da “Revista USP”
Por fim, a seção Livros apresenta uma resenha do volume mais recente da coleção Editando o Editor. O foco desta edição, assinada por Fernando Paixão, está no trabalho de Jiro Takahashi, editor com vasta experiência em diferentes áreas do mercado e criador de coleções literárias de sucesso, como Vaga-Lume e Para Gostar de Ler.
A Revista USP, número 145, está disponível gratuitamente neste link.
Texto: Ricardo Thomé – Estagiário sob supervisão de Roberto C. G. Castro
Arte: Daniela Gonçalves – Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado dos Santos
Jornal da USP