Terapia biofotônica elimina vírus e bactérias de órgãos para transplante

Uma nova técnica que possibilita descontaminar órgãos para transplante com uso de radiação ultravioleta e luz vermelha foi desenvolvida por pesquisadores brasileiros e canadenses e descrita em artigo publicado na revista Nature Communications.

O trabalho conta com apoio da FAPESP e foi parcialmente desenvolvido no Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (CEPOF), sediado na Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos.

“Esta técnica biofotônica é revolucionária, pois ajuda a evitar a transmissão de doenças durante transplantes de órgãos”, disse Vanderlei Bagnato, diretor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e coordenador do CEPOF, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) apoiados pela FAPESP.

O grupo de Bagnato trabalhou em parceria com pesquisadores da Universidade de Toronto, no Canadá, que abriga o maior programa de transplante de pulmão do mundo, com 197 cirurgias realizadas em 2018. Segundo o coordenador do serviço, Marcelo Cypel, um dos obstáculos para a realização dos procedimentos é a necessidade de descontaminar os órgãos a serem transplantados, principalmente quando o doador era portador do vírus da hepatite C.

“Já foram realizados 10 testes com pacientes [usando a terapia biofotônica]. Em oito casos, a nova técnica se mostrou capaz de reduzir significativamente a carga viral dos órgãos para transplante. Em outros dois, o procedimento praticamente eliminou a presença do vírus”, contou Cypel.

O método foi descrito no artigo Inactivating hepatitis C virus in donor lungs using light therapies during normothermic ex vivo lung perfusion. Os cientistas fizeram uso de luz ultravioleta e de luz vermelha para reduzir a carga viral e bacteriana de órgãos para transplante, evitando que doenças como hepatite sejam transmitidas para os receptores.

Além da FAPESP, também financiaram a pesquisa o Canadian Institutes of Health Research, do Toronto General & Western Hospital Foundation, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Segundo Bagnato, a técnica foi inicialmente desenvolvida para tratar pulmões, mas já está sendo adaptada para fígado e rins. “Isso deverá melhorar muito as condições pós-operatórias dos transplantados e, ao mesmo tempo, permitirá aproveitar melhor órgãos que hoje, dependendo do nível de contaminação, são descartados”, disse.

Descontaminação em dois passos

No caso do transplante de pulmão, o órgão a ser transplantado tem o sangue substituído por um líquido de preservação – procedimento conhecido como perfusão, desenvolvido no Canadá por Cybel.

“A perfusão consegue reduzir a carga viral e bacteriana, mas não eliminá-la. Isso obriga o paciente a ser submetido a um tratamento com antibióticos e antivirais nos três meses seguintes ao transplante”, explicou o cientista.

“Pensando em formas de reduzir ainda mais ou eliminar a carga viral dos órgãos para transplante, especificamente o vírus da hepatite C, considerei a possibilidade de usar métodos de descontaminação por luz ultravioleta, que são comuns na descontaminação de sangue, por exemplo. Foi assim, há cerca de quatro anos, que iniciou nossa parceria com Bagnato e sua equipe de São Carlos. Ele e seus parceiros vieram nos visitar, conheceram o problema e, passado apenas um mês, nos enviaram um primeiro protótipo da máquina de descontaminação por radiação ultravioleta”, contou Cypel.

“A técnica de descontaminação biofotônica desenvolvida nos laboratórios de São Carlos consiste de dois procedimentos específicos, que acontecem simultaneamente”, explicou Cristina Kurachi, professora no IFSC e participante do projeto.

Durante o processo de perfusão, enquanto os pesquisadores fazem circular o líquido no pulmão a ser transplantado, adicionam-se moléculas no tecido pulmonar e a descontaminação biofotônica ocorre diretamente no órgão, que é exposto à radiação de luz vermelha com comprimento de onda de 660 nanômetros (nm). Essa radiação, por ação fotodinâmica oxidativa, elimina microrganismos aderidos ao tecido.

Ao mesmo tempo, a carga viral é também carregada pelo líquido circulante, que está em constante descontaminação por receber radiação ultravioleta de comprimento de onda de 254 nm.

“A função da radiação ultravioleta é destruir diretamente os microrganismos por meio do rompimento e da quebra das moléculas presentes em bactérias e vírus. Assim, as bactérias são mortas, e os vírus, totalmente inativados. Já com o banho de luz vermelha a ação de descontaminação ocorre de forma indireta, pela fotossensibilização”, disse Kurachi

Essa terapia biofotônica envolve a introdução de um fármaco fotossensibilizador no líquido da perfusão. A ativação do fármaco requer moléculas de oxigênio (presente nos vírus) e irradiação de luz em um comprimento de onda específico (a luz vermelha de 660 nm). Uma vez que a droga fotossensibilizadora é banhada pela luz vermelha, suas moléculas absorvem energia. Tal energia é transferida às moléculas de oxigênio do vírus, que se tornam extremamente oxidantes, causando danos irreversíveis às membranas e ao material genético de diversas cepas virais, incluindo o vírus da hepatite C (HCV) e da Aids (HIV-1).

“O líquido de preservação da perfusão é especial, muito caro, composto de tal forma a preservar o órgão. Pelo seu custo, utiliza-se uma quantidade mínima nos procedimentos. Agora com a técnica e o equipamento desenvolvidos, com apenas um litro do líquido é possível circular no órgão por centenas de vezes, limpando por completo os contaminantes”, disse Bagnato.

O método foi primeiro testado em pulmões humanos rejeitados para transplante, a fim de verificar se a carga viral nos tecidos poderia ser reduzida pelo banho de radiação. Segundo Cypel, a carga viral caiu drasticamente após o procedimento.

“O passo seguinte foi repetir a técnica em pulmões de porcos, que eram então transplantados, para verificar se o procedimento causava algum tipo de dano bioquímico ou morfológico nos tecidos, o que não ocorreu”, disse Cypel.

Por fim, tiveram início os testes com pacientes. “Nos primeiros 10 transplantes que fizemos, a nova técnica eliminou o vírus da hepatite C nos órgãos doados a dois pacientes. Nos outros oito pacientes, a carga viral caiu muito, mas sete dias após a cirurgia o vírus da hepatite voltou a se multiplicar e os pacientes tiveram de receber tratamento antiviral por três meses”, disse.

“Foi importante verificar que o vírus, quando não era eliminado, reaparecia nos testes laboratoriais dos pacientes após sete dias. Com essa informação, nós já realizamos outros dois transplantes, nos quais o tratamento antiviral se concentrou na primeira semana posterior à cirurgia. Nos dois casos o vírus foi eliminado”, disse Cypel.

De acordo com Bagnato, o aperfeiçoamento da terapia biofotônica, com a queda da carga viral e bacteriana cada vez mais acentuada, proporcionará melhores chances de sucesso dos transplantes. “Nosso objetivo é que a terapia com luz elimine totalmente os contaminantes bacterianos e virais dos órgãos a serem transplantados. Se conseguirmos, o uso do líquido perfusivo poderá mesmo vir a ser eliminado”, disse.

Toda a parte clínica do trabalho vem sendo realizada pela equipe chefiada por Cypel, em Toronto. Coube aos pesquisadores de São Carlos propor a nova técnica biofotônica, desenvolver os instrumentos e participar das análises dos resultados. Além de Bagnato e Kurachi, a equipe brasileira tem a participação de Natalia Inada, também do IFSC-USP.

Uma patente foi depositada no Canadá e já existe interesse de duas empresas internacionais em estudar a possibilidade da fabricação e comercialização do equipamento. A equipe trabalha agora para implantar o programa de descontaminação de fígados e rins no Brasil.

“Tudo isso só foi possível graças à filosofia introduzida pelo programa CEPID, da FAPESP, que nos estimula a colaborar internacionalmente e, ao mesmo tempo, gerar conhecimento de relevância prática”, afirmou Bagnato.

O artigo Inactivating hepatitis C virus in donor lungs using light therapies during normothermic ex vivo lung perfusion, de Marcos Galasso, Jordan J. Feld, Yui Watanabe, Mauricio Pipkin, Cara Summers, et.al., pode ser lido em: https://doi.org/10.1038/s41467-018-08261-z.

Peter Moon | Agência FAPESP 

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