Expedição São Francisco: de bicicleta, pesquisadores registram relação de moradores com o rio

Depoimentos e imagens serão analisados e transformados em produção audiovisual, divulgando distintas vozes sobre as mudanças e a degradação de um dos cinco maiores rios do Brasil

Foto de um homem e uma mulher, ambos montados em suas biciletas equipadas com mochilas, se delocando em uma estrada de terra.

Durante a expedição, os pesquisadores Mateus e Maria Paula ouviram moradores sobre suas relações com o rio, as mudanças percebidas na paisagem e as iniciativas locais para enfrentar os desafios relacionados à degradação ambiental – Foto: Leonardo Ferreira Murta

Apesar da grande importância social, cultural e econômica, o Rio São Francisco vem sofrendo com impactos significativos decorrentes de ações humanas e mudanças climáticas, que, combinadas, aceleram sua degradação. O tema vem sendo estudado por várias instituições científicas e, nessa abordagem, dois pesquisadores – um da USP e outra da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) – percorreram de bicicleta o trajeto do rio, desde sua nascente, em Minas Gerais, passando por Bahia e Pernambuco, até chegar à foz, entre os estados de Alagoas e Sergipe. Durante a expedição, eles ouviram moradores sobre suas relações com o rio, as mudanças percebidas na paisagem e as iniciativas locais para enfrentar os desafios. O material coletado, incluindo depoimentos, será analisado e transformado em uma produção audiovisual, divulgando distintas vozes sobre essas perspectivas.

Durante o percurso, os pesquisadores, Mateus Barbosa Verdú, doutorando pela Faculdade de Educação (FE) da USP, e Maria Paula Pires de Oliveira, pós-doutoranda pela PUC-Campinas e ex-aluna da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP), encontraram diversas comunidades enfrentando problemas de acesso à água, falta de saneamento básico, assoreamento do rio e conflitos latifundiários. No entanto, também conheceram comunidades com iniciativas coletivas e individuais que buscavam lidar com os desafios da região, como ações de proteção das lagoas marginais do Rio São Francisco, essenciais para a reprodução de peixes. Maria Paula explica que, durante a estação seca, essas lagoas se isolam do canal principal do rio, formando lagos e áreas alagadas que atuam como berçários naturais para várias espécies aquáticas.

Foto de uma placa de pedra indicando que alí era a nascente histórica do Rio São Francisco. Ao fundo, a nascente do rio coberta por vegetação verde e pedras.

Nascente histórica do Rio São Francisco – Foto: Maria Paula P. Oliveira e Mateus B. Verdú

Foto de duas bicicletas estacionadas na frente de uma placa de pedra que diz Nascente do Rio São Francisco.

Entrada da nascente histórica do Rio São Francisco, no Parque Nacional da Serra da Canastra/MG – Foto: Maria Paula P. Oliveira e Mateus B. Verdú

Foto de uma cachoeira em meio uma paisagem montanhosa de pedras.

Cachoeira Casca d’Anta – Foto: Maria Paula P. Oliveira e Mateus B. Verdú

A expedição, que durou seis meses e meio, percorreu povoados, aldeias indígenas, comunidades quilombolas e centros urbanos. A viagem começou em Desemboque (Minas Gerais) e em seguida atravessou o Parque Nacional da Serra da Canastra para conhecer a nascente histórica do rio. Foi lá também que os pesquisadores visitaram a maior queda d’água do rio São Francisco, a cachoeira Casca d’Anta, com 186 metros de altura. A escolha pela bicicleta proporcionou autonomia e flexibilidade aos pesquisadores, permitindo uma interação mais direta com as pessoas e maior mobilidade pelas estradas dos biomas Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica.

Acesse o vídeo produzido pelos pesquisadores para o Jornal da USP.

Em entrevista ao Jornal da USP, os pesquisadores contaram que o trecho inicial foi mais difícil de percorrer ao lado do rio, devido às propriedades rurais e estradas mais distantes de seu leito. “A partir de Morada Nova de Minas, o rio se tornou uma presença mais constante durante a travessia, devido à aproximação dos caminhos e estradas ao rio”, relata Maria Paula. “Entre São Gonçalo do Abaeté e Pirapora, o percurso foi feito em pequenas estradas de terra e, muitas vezes, foi necessário cruzar o rio de barco, com o apoio de pescadores e barqueiros locais. Contamos muito com a receptividade das pessoas nas localidades por onde passamos”, diz.

Por se tratar de uma viagem complexa, o trabalho de campo intercalou-se entre deslocamento e permanência em algumas localidades. Alguns dos municípios onde os pesquisadores permaneceram por mais dias foram Três Marias (MG), Ponto Chique (MG), São Romão (MG), São Francisco (MG), Januária (MG), Matias Cardoso (MG), Bom Jesus da Lapa (BA), Sítio do Mato (BA), Xique-Xique (BA), Pilão Arcado (BA), Sento Sé (BA), Sobradinho (BA), Juazeiro (BA), Floresta (PE), Petrolândia (PE), Paulo Afonso (BA), Piranhas (AL), Poço Redondo (SE), Traipu (AL), Porto Real do Colégio (AL), Neópolis (SE) e Brejo Grande (SE).

Rio São Francisco: trajeto de bike feito pelos pesquisadores

Infográfico Jornal da USP feito com imagens de catalyststuff/Freepik e rawpixel.com/Freepik

Infográfico Jornal da USP feito com imagens de catalyststuff/Freepik e rawpixel.com/Freepik

Infográfico Jornal da USP feito com imagens de catalyststuff/Freepik e rawpixel.com/Freepik

Infográfico Jornal da USP feito com imagens de catalyststuff/Freepik e rawpixel.com/Freepik

Mapas criados por Beatriz Haddad e Gustavo Radaelli com ícones de catalyststuff/Freepik e rawpixel.com/Freepik

Um rio transpassado por ações humanas

Durante a expedição, Mateus e Maria Paula identificaram alterações na paisagem que afetam o Rio São Francisco e as comunidades ribeirinhas. Entre elas, eles destacam o desmatamento, a expansão de monoculturas com canalização de água para irrigação, atividades mineradoras, a construção de pequenas barragens em afluentes do São Francisco para fins agrícolas, além das grandes barragens das usinas hidrelétricas Três Marias, Sobradinho, Luiz Gonzaga, Paulo Afonso e Xingó. Além disso, eles também observaram o despejo de esgoto e o descarte de resíduos sólidos no rio, a destruição de matas ciliares e nascentes, o assoreamento do leito e o uso intensivo de agrotóxicos.

Mateus ressalta que essas questões não afetam apenas o ecossistema local, mas também geram impactos sociais, econômicos e culturais à população. Um exemplo citato pelo pesquisador foi o impacto nas práticas espirituais e religiosas das comunidades que sofrem com a poluição, a redução da vazão do rio e o desaparecimento de áreas sagradas após a construção das barragens. A festa de Iemanjá, em Paulo Afonso, na Bahia, por exemplo, teve que sair do local onde ocorria originalmente devido à poluição do rio que ocasionava uma reprodução intensa da planta baronesa em suas margens, dificultando assim o acesso dos fiéis e demais participantes ao rio durante a celebração.

Imagem de um barco estacionado na beira de um rio. Na água, duas mulheres vestidas de branco participando de cultos religiosos.

Festa de Iemanjá (Paulo Afonso/BA) – Foto: Maria Paula P. Oliveira e Mateus B. Verdú

 

O rio tomado pelo mar

Os pesquisadores apontaram a redução significativa da vazão do Rio São Francisco em sua foz como um problema grave, resultado da construção de barragens ao longo do seu curso. O avanço da água do mar sobre a foz foi relatada por moradores locais.

“Antes o rio avançava sobre o mar, e hoje é o mar que invade o rio”

Outro depoimento compartilhado por Maria Paula descreve que “o rio chegava a avançar quilômetros no mar, mas atualmente a água na foz está salobra e sofre a influência das marés”.

Maria Paula explica que esse desequilíbrio ambiental levou à permanente submersão do povoado Cabeço, em Brejo Grande (SE), comunidade de pescadores que despareceu após sofrer várias inundações em virtude da construção de barragens. Após vinte anos do ocorrido, a Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf), responsável pela administração das barragens ao longo do São Francisco, indenizou os antigos moradores do povoado, que foram realocados em outra região.

Lagoa marginal da Lavagem e Rio São Francisco (Manga/MG e Matias Cardoso/MG) – Foto de drone por Marcos Aurélio (MG Matias)

Engajamento da comunidade

Os pesquisadores também conheceram diversas iniciativas de moradores do Rio São Francisco para enfrentar os desafios da região. Entre elas, destacam-se a recuperação de nascentes na região do Peruaçu, a construção de barragens subterrâneas no município de São Francisco, práticas de recaatingamento (inciativas de recuperação e conservação do bioma Caatinga) e Escolas Família Agrícola.

Outra iniciativa relevante apontada pelos pesquisadores foi o Movimento Carta de Morrinhos, que tem como principais objetivos aumentar a disponibilidade de água na bacia, preservar as lagoas marginais da região, melhorar a qualidade da água, além de promover a mobilização, comunicação e organização da sociedade, juntamente com ações operacionais, técnicas e científicas. Atualmente, o movimento, cuja sede fica em Matias Cardoso/MG, conta com a participação de pescadores, quilombolas, técnicos da área ambiental, entre outros envolvidos.

Para Mateus e Maria Paula, este é um exemplo de ação de auto-organização comunitária para monitoramento das lagoas marginais do Rio São Francisco. Os participantes do Movimento Carta de Morrinhos coletam periodicamente dados como volumes de precipitação, vazão do rio, altura das lagoas e inundação dos sangradouros (canais que conectam o rio às lagoas), organizando essas informações em gráficos e gerando uma série histórica que possibilita visualizar como está o “ir e vir” dos peixes entre as lagoas marginais e o Rio São Francisco, processo muito importante para garantir a biodiversidade da região.

Após o término do trabalho de campo, a pesquisa de doutorado realizada na FE-USP, intitulada Nas barrancas do não saber: o rio como signo do aprendizado, voltará sua atenção à análise dos cadernos de campo e à literatura da área filosófico-educacional, com vistas a pensar o problema do aprendizado em sua complexa singularidade. Em relação à pesquisa de pós-doutorado Resiliência socioecológica nas passagens do São Francisco: percepções e práticas ao longo do rio-mar, realizada na PUC-Campinas, as entrevistas produzidas ao longo do São Francisco serão analisadas e será feito um trabalho de integração, comparação e complementação entre percepções e artigos científicos. Ao final, o material será transformado em uma produção audiovisual com o intuito de popularizar os resultados da pesquisa, tendo como foco as diferentes vozes de habitantes do rio.

Mais informações com Mateus Barbosa Verdú, mateus.verdu@usp.br, e Maria Paula P. Oliveira, mariapaulap.oliveira@gmail.com

Texto: Ivanir Ferreira
Arte: Jornal da USP

Por Jornal da USP

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