Pesquisa preliminar realizou testes com o acefato e o diuron; a mistura é nociva ao funcionamento celular e deve ser evitada

“A maior preocupação que temos é com quem entra em contato no campo, porque essas pessoas estão mais propensas à contaminação do que os consumidores do alimento”, explica Professor da USP – Foto: Rosyid Arifin – Pexels
Um estudo conduzido por pesquisadores da USP e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) concluiu que a combinação dos pesticidas acefato e diuron – amplamente utilizados em plantações para controlar pragas e plantas daninhas – pode desregular mecanismos importantes da membrana celular de mamíferos. A membrana controla a entrada de substâncias, como nutrientes e oxigênio, e a saída de resíduos das células.
O estudo observou que o “coquetel” induz a mudanças na orientação e na conformação do grupo colina (C5H14NO+) — componente estrutural que mantém a integridade da membrana — e desorganiza as cadeias de hidrocarbonetos dos fosfolipídios, responsáveis pela fluidez da estrutura. Isso ocorre pois os pesticidas têm uma interação preferencial com os grupos de cabeça polares (extremidades das moléculas de gordura que interagem com a água) e, quando estabelecem uma ligação, conseguem interferir na organização natural das moléculas.

Luis Fernando do Carmo Morato – Foto: Reprodução/Linkedin
O primeiro autor do artigo é Luis Fernando do Carmo Morato, graduado em Física pela Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Unesp e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia de Materiais (Posmat). “O Brasil é um dos maiores consumidores de pesticidas do mundo; muitos são utilizados de forma irregular e chegam aos alimentos e aos aquíferos”, explica.
“Essa pesquisa ajuda a entender quais são os mecanismos de interação com as nossas células, e poderá ser usada como base para estratégias de prevenção e para encontrar alternativas mais seguras no uso dos pesticidas”
Estudos consolidados da ciência agrária já constataram que ambos os agrotóxicos avaliados podem intoxicar o organismo humano, seja através do manejo indevido de água e equipamentos de cultivo ou do consumo de alimentos contaminados.
Os riscos conhecidos vão desde alergias e náuseas até lesões em órgãos, alterações neurológicas e câncer, mas para avaliar os danos específicos do coquetel no corpo ainda são necessários testes em laboratório.
O estudo está ligado a um projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) que foi coordenado por Osvaldo Novais, diretor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP. Com o fomento do Instituto Nacional de Eletrônica Orgânica (Ineo), o trabalho une 18 pesquisadores de diferentes laboratórios, trazendo contribuições multidisciplinares para o conhecimento em pesticidas.
Agrotóxicos em pauta

Imagem: Freepik
O acefato é um inseticida proibido na União Europeia, devido a alertas internacionais que apontam seu potencial cancerígeno e toxicidade para o sistema reprodutivo humano. Ele é conhecido por inibir a acetilcolinesterase (AChE), uma enzima regulatória da transmissão de impulsos nervosos, o que pode levar a disfunções na contração muscular, na memória e na cognição. Devido à alta presença de resíduos do agrotóxico em alimentos, o Brasil estipula medidas restritivas para sua produção e uso desde 2013, além de estratégias de mitigação dos riscos associados à saúde humana. Porém, segundo relatório da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), ele foi o pesticida mais usado irregularmente no País entre 2018 e 2022, em culturas onde o uso é proibido ou acima da concentração permitida por lei.
O diuron, por sua vez, é um herbicida comum na produção de cana-de-açúcar, a maior monocultura do Estado de São Paulo. Ele também é aplicado em outras culturas primordiais para a economia nacional, como algodão, café e citros, e age inibindo a fotossíntese de plantas daninhas. Em contato com o corpo humano, porém, pode ocasionar câncer na região da bexiga e reduzir a viabilidade das células da placenta. Ele foi escolhido para a análise pois, entre 2018 e 2019, foi encontrado excesso de diuron em amostras de repolho.
Sob as lentes do microscópio
O estudo dessa aplicação sinérgica em nível molecular prevê interações celulares distintas com consequências imprevisíveis e, por isso, é preciso redobrar a atenção para evitar combinações. “Para entender o funcionamento de qualquer fármaco na planta, num animal ou numa pessoa, é preciso ver como ele interage no nível da célula”, explica Morato. “A membrana celular é a primeira barreira contra um efeito molecular.”
Uma ferramenta crucial para a pesquisa foi o uso de sistemas miméticos de membranas de mamíferos. “Nós já temos mais de 30 anos de experiência em trabalhos com simulação e modelagem de membranas celulares, nossas equipes têm liderança na área em escala mundial”, realça Novais. Para mimetizar a membrana plasmática, foram utilizados filmes de Langmuir — monocamadas de moléculas anfifílicas, isto é, que possuem uma parte hidrofílica (que interage bem com a água) e uma hidrofóbica (que não se mistura).

No corpo humano, a membrana plasmática, responsável por manter a integridade das células vivas, é composta de uma bicamada lipídica anfifílica (com partes que atraem a água e outras que repelem), mas os cientistas explicam que a monocamada é mais facilmente manipulável nas simulações – Imagem: do artigo
O coquetel de pesticidas
O fenômeno chamado de “efeito coquetel” é muito estudado na indústria farmacêutica e se refere à união de dois elementos gerando um impacto superior ou diferente do impacto isolado de cada um. Se um produto químico é facilmente absorvido, por exemplo, ele pode aumentar a absorção de um composto secundário em regiões importantes da célula.
A baixa disponibilidade de informações acerca de possíveis efeitos “coquetel” na agricultura foi o ponto de partida dos pesquisadores: a exatidão na dosagem de pesticidas é essencial para garantir o resultado desejado e, simultaneamente, evitar danos graves no caso de uma exposição. “Se uma concentração baixa do pesticida não causa problema na membrana celular, não deve causar problema à saúde, então o malefício viria com uma concentração maior”, ressalta Morato.
Porém, as múltiplas ocorrências de uso indevido e contaminação ambiental e humana por agrotóxicos evidenciam que existe uma lacuna na fiscalização das lavouras. Além da toxicidade particular dos pesticidas, agrotóxicos com diferentes funções costumam ser aplicados no mesmo plantio, o que pode culminar em repercussões não intencionais na saúde dos trabalhadores. “É muito importante ter o cuidado na administração dos pesticidas e evitar contato direto”, frisa. “O descarte também é [um problema], pois ele muitas vezes é feito de maneira não controlada e intoxica o meio ambiente”.
Os pesquisadores explicam que, para dar continuidade às investigações e entender as implicações biológicas específicas na saúde, o próximo passo é buscar evidências sólidas do efeito sinérgico dos agroquímicos nas células vivas. “Em geral, nós estamos preocupados com a contaminação de pesticidas isoladamente, e o que o nosso estudo chama atenção é que os efeitos podem ser maiores quando você combina mais de um. A preocupação atual não é suficiente”, finaliza Novais.
O artigo Combined impact of pesticides on mono- and bilayer lipid membranes está disponível on-line e pode ser lido aqui.
Mais informações: luis.morato@unesp.br, com Luis Fernando do Carmo Morato, e chu@ifsc.usp.br, com Osvaldo Novais Oliveira Jr.
Texto: Gabriela Nangino – Estagiária sob orientação de Fabiana Mariz
Arte: Gustavo Radaelli – Estagiário sob orientação de Moisés Dorado
Por Jornal da USP