Mais do que corpos d’água: livro mostra como rios urbanos moldam cidades e culturas

Lançado no Portal de Livros Abertos da USP e organizado por pesquisador do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos, anuário investiga como rios urbanos influenciam cultura, memória e planejamento das cidades

Apesar da expressão “selva de pedra” ser constantemente utilizada como sinônimo das nossas grandes cidades, sabemos que elas são muito mais do que concreto e tijolos. Somadas às edificações nas quais vivemos e pelas quais nos movimentamos, existem infraestruturas verdes, como as árvores, e azuis, como os rios, que também fazem parte da vida e da história das nossas metrópoles.

Pensando nisso é que nasceu a rede temática ibero-americana RUN (Ríos Urbanos Naturalizados), formada em 2021 com o apoio do Programa Ibero-Americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (CYTED), reunindo quinze instituições de diferentes países ibero-americanos.

Carlos Smaniotto Costa, da Universidade Lusófona, e Manoel Rodrigues Alves, do IAU USP – Foto: Reprodução/Youtube e IAU USP

Lançado recentemente no Portal de Livros Abertos da USP, o livro Rios Urbanos na Ibero-América: propostas teórico-conceituais e metodológicas é a segunda produção da rede RUN. Diferente do primeiro anuário, publicado pela Universidade Lusófona, o volume propõe novas abordagens teórico-metodológicas para a regeneração fluvial e a minimização de riscos. A publicação está disponível gratuitamente neste link.

A iniciativa é capitaneada por Carlos Smaniotto Costa, professor da Universidade Lusófona e coordenador do projeto geral. “A RUN foi aprovada em meados de 2019, mas o projeto ficou parado por dois anos. Eu recebi um convite do colega Carlos Smaniotto Costa. Ele queria uma rede que retratasse a questão dos rios urbanos”, explica Manoel Rodrigues Alves, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP em São Carlos e organizador da nova obra​.

Capa e páginas do livro Rios Urbanos na Ibero-América: propostas teórico-conceituais e metodológicas que tem download gratuito – Foto: Reprodução/Portal de Livros Abertos

Uma abordagem multidisciplinar

Conforme Alves, a RUN reúne pesquisadores de diferentes países ibero-americanos, como Brasil, Espanha, Portugal e outras nações latino-americanas, em um esforço colaborativo que inclui arquitetos, geógrafos, ambientalistas e técnicos de informação. “Buscamos preservar a especificidade de cada pesquisa, mas também identificar pontos em comum. A rede possui singularidades em suas abordagens”, explica o professor.

Os simpósios presenciais realizados anualmente na Colômbia, Argentina e Peru foram fundamentais para definir os eixos conceituais do livro. Cada capítulo foi desenvolvido por pelo menos duas instituições diferentes, refletindo a troca contínua de conhecimento que a RUN promove. “Nenhum texto foi produzido apenas pelo pessoal da USP; todas as publicações foram fruto de parcerias institucionais, [a ideia era] estimular essa troca de conhecimento”, reforça Alves.

Organizado em sete partes, o material explora desde questões conceituais sobre natureza e patrimônio fluvial até o papel dos rios na memória coletiva e na identidade cultural. Também analisa como as infraestruturas hidráulicas e intervenções urbanas moldam os rios e seus territórios, além de discutir governança hídrica, ecologias possíveis e estratégias de capacitação comunitária. “Ele não é um anuário produzido por profissionais da arquitetura para profissionais da arquitetura. Ele tem mais abrangência”, afirma o pesquisador.

A proposta é atingir um público mais amplo, incluindo planejadores urbanos, paisagistas, educadores e cidadãos interessados em monitoramento de rios, ciência cidadã e cocriação.

Um dos capítulos do livro aborda metodologias participativas para o engajamento da população na preservação do Parque Recanto das Nascente, em Belo Horizonte, Minas Gerais – Foto: Reprodução/Rios Urbanos na Ibero-América

Jogos, narrativas e justiça ambiental

Para discutir o tema dos rios urbanos, os pesquisadores selecionaram diferentes abordagens. Uma delas envolve entender como a literatura também ajuda a compreender o papel dos rios na formação das cidades e de suas memórias. É isso que propõe o capítulo que analisa a obra O Outro Pé da Sereia, do escritor moçambicano Mia Couto. No texto dedicado à obra, os autores mostram como o rio, longe de ser apenas um elemento físico, atua como fio condutor de afetos, disputas e imaginários coloniais e pós-coloniais.

Em tom lúdico, o material também apresenta ferramentas pedagógicas inovadoras, como o jogo educativo PlanforFlooding, voltado para crianças entre 4 e 8 anos, que ensina conceitos básicos sobre rios, planejamento urbano e prevenção de inundações. Criado por pesquisadores da rede RUN, o jogo aposta na gamificação como estratégia de formação cidadã desde a infância, incentivando o cuidado com os territórios e a participação ativa em decisões ambientais.

Além disso, outro exemplo presente no livro é o caso do Parque Recanto das Nascentes, em Belo Horizonte, Minas Gerais. No bairro Betânia, onde nove nascentes do Ribeirão Arrudas foram soterradas por obras imobiliárias, a comunidade se mobilizou para recuperar a área degradada. Com apoio de universidades e do projeto Mapas, moradores desenvolveram um plano participativo com cartografia comunitária e ações de renaturalização. O antigo clube, antes transformado em aterro, hoje simboliza resistência e justiça ambiental.

Os demais capítulos discutem a relação entre a natureza, conservação e a memória ribeirinha, destacando diferentes tipos de conflitos envolvendo as águas.

Importância do acesso aberto

Disponibilizado gratuitamente no Portal de Livros Abertos da USP, o trabalho reflete o compromisso da RUN em disseminar o conhecimento de forma ampla e acessível. “O conhecimento está aí para ser produzido e divulgado. O portal é uma grande plataforma que permite isso, oferecendo essa possibilidade”, defende o professor.

Além disso, para o especialista, o acesso aberto busca romper as barreiras do conhecimento restrito a círculos acadêmicos e incentivar o diálogo entre academia e sociedade.

A terceira edição do anuário está prevista para este ano e novos produtos estão sendo planejados, todos de acesso aberto. De acordo com Alves, “é uma postura nossa, um objetivo nosso, não deixar esse conhecimento restrito às quatro paredes da academia, nem transformá-lo em uma troca exclusiva entre pesquisadores”.

O e-book Rios Urbanos na Ibero-América: propostas teórico-conceituais e metodológicas está disponível neste link.

Mais informações: https://run.ulusofona.pt/pt

Texto: Denis Pacheco – Jornal da USP

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