Pesquisa resgata história de 27 mulheres pioneiras da arquitetura no Brasil

Tese de doutorado defendida pela historiadora Camila Belarmino, no Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP em São Carlos, mapeia a atuação feminina na arquitetura carioca do início do século 20

Apesar de muitos dos grandes nomes da arquitetura brasileira serem de homens, a presença feminina é uma constante no campo desde o final do século 19, quando o Estado autorizou as mulheres a se matricularem em instituições de ensino superior. Foi justamente a invisibilidade dessas pioneiras que motivou a historiadora Camila Almeida Belarmino a formular uma pergunta incômoda: onde estão as mulheres na história da arquitetura e do urbanismo?

A inquietação se transformou em tese de doutorado, defendida no Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, em São Carlos, sob orientação da professora Eulalia Portela Negrelos. O estudo reconstrói, com base em extensa pesquisa documental, as trajetórias de 27 arquitetas que atuaram no Rio de Janeiro entre as décadas de 1910 e 1960.

De acordo com Camila, que também é professora, o impulso inicial para começar a pesquisa veio da constatação da ausência feminina na historiografia tradicional da arquitetura: “[A questão] surgiu no momento em que eu estava em sala de aula, na disciplina de História da Arquitetura, e minhas alunas começaram a questionar: onde estavam as mulheres? Porque as disciplinas, as ementas, os conteúdos citavam somente homens”. A resposta, ela percebeu, era mais estrutural do que ocasional.

Camila Almeida Belarmino, pesquisadora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos – Foto: Divulgação/IAU-USP

Para investigar o assunto, a autora mergulhou em arquivos públicos, privados e familiares para localizar registros acadêmicos, projetos e documentos pessoais. O processo, conforme a pesquisadora, foi longo. “Acabei indo para as fontes primárias, porque procurei em livros, textos, artigos acadêmicos, enfim, e não encontrei praticamente nada. Então fui procurar nos arquivos. E obtive a informação de que a Escola Nacional de Belas Artes era a primeira escola de arquitetura do Brasil”, conta.

A Escola Nacional de Belas Artes (Enba) foi o principal centro formador de arquitetas no Rio de Janeiro entre as décadas de 1910 e 1960. Herdeira da Academia Imperial de Belas Artes, a Enba foi incorporada à Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro) e se consolidou como uma das mais importantes instituições de ensino superior em artes e arquitetura no País.

O recorte histórico da tese se concentrou entre 1910 e 1960, período em que o campo da arquitetura se institucionalizou no Brasil, com a fundação de escolas e conselhos profissionais. A Enba, onde as 27 mulheres se formaram ou cursaram arquitetura, foi o principal foco do levantamento. “O número de estudantes que se formaram entre 1903 e 1945 foi de 515 homens e apenas 25 mulheres. Duas mulheres não obtiveram o diploma, mas concluíram o curso”, detalha Camila.

Engenheira e urbanista Carmen Portinho com seu companheiro Affonso Reidy (ao lado dela) e a maquete do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1954 – Foto: Rio Memórias 1954 / Tese: A mulher na arquitetura e no urbanismo

Arquiteta e urbanista Déa Torres na prefeitura do Distrito Federal, em 1958 – Foto: Bonduki (1999, p. 13) / Tese: A mulher na arquitetura e no urbanismo

Elas sempre estiveram presentes

Entre os nomes resgatados estão pioneiras como Arinda Cruz Sobral, Danúzia Palma Dias Pinheiro e Heloísa Pinto da Silveira. Em um cenário marcado por intensas restrições sociais e legais às mulheres, essas profissionais não apenas exerceram a arquitetura como também se engajaram em lutas feministas por direitos educacionais e profissionais. Arinda, por exemplo, foi reconhecida em sua época como a primeira mulher diplomada em arquitetura no Brasil, um feito posteriormente apagado pela historiografia do campo. “Ela não era invisível, ela foi invisibilizada pela maneira como a gente está contando essa história”, afirma a pesquisadora.

Segundo Camila, as 27 arquitetas analisadas na tese tiveram trajetórias marcadas por iniciativas relevantes, ainda que pouco documentadas nas narrativas oficiais. Atuaram em concursos públicos, conquistaram prêmios e integraram espaços institucionais, como o diretório estudantil da Escola Nacional de Belas Artes. Algumas combinaram a arquitetura com a arte ou o magistério; outras avançaram no urbanismo, em um momento em que o curso era desvinculado da arquitetura e com características institucionais próprias.

Matéria sobre Leila Oneto de Barros na revista Brasil Feminino, de 1932, e Danuzia Palma Dias Pinheiro em matéria de 1930 sobre a emancipação profissional da mulher – Revistas Brasil Feminino e Vida Doméstica / Tese: A mulher na arquitetura e no urbanismo

Mesmo enfrentando um ambiente profissional essencialmente masculino, muitas dessas mulheres encontraram caminhos de resistência e afirmação por meio da prática técnica, do ensino e do ativismo. “Não vou romantizar afirmando que todas as mulheres eram geniais. Não. Mas elas ultrapassaram limites e demonstraram que estavam ali, presentes, e que realmente queriam participar desse mundo majoritariamente masculino, que era o mundo da arquitetura e da construção.”

Em linhas gerais, a tese faz uma crítica incisiva à maneira como se construiu a história da arquitetura no País. Para Camila, “quando a gente escreve uma história onde faltam indivíduos, identidades, representatividades, a gente não está fazendo história. A gente está deshistoricizando”. Essa revisão é baseada em conceitos como campo, habitus, violência simbólica e gênero, a partir de autores como Pierre Bourdieu e Joan Scott.

Mulheres estudantes da Escola Nacional de Belas Artes em exposição de trabalhos em 1935 – Foto: Reprodução / Tese: A mulher na arquitetura e no urbanismo

Formatura da turma de Maria Adelaide Rabello Albano e Estephania Ribeiro Paixão em 1944 – Foto: Revista Arquitetura, 1994 /Tese: A mulher na arquitetura e no urbanismo

Diante das atuais discussões sobre igualdade de gênero e cidades mais inclusivas, Camila reforça que revisitar o passado é essencial. “Se começarmos a falar sobre a presença dessas mulheres no campo da arquitetura – e até observar isso em outros campos – vamos perceber que as mulheres sempre trabalharam.” Para ela, reconhecer esse protagonismo é parte fundamental de qualquer transformação urbana. “Elas já estavam presentes desde o momento inicial”, conclui.

A tese de doutorado A mulher na arquitetura e no urbanismo: trajetórias profissionais entre as décadas de 1910 e 1960 no Rio de Janeiro, pode ser acessada neste link

Mais informações: milabelarmino@hotmail.com, com Camila Belarmino

Texto: Denis Pacheco – Jornal da USP

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